sexta-feira, 16 de novembro de 2007

Episódio 6 - A Caixa de Pandora






A mãe de Perez estava no hospital havia alguns dias. Apesar de estar em coma, estava estabilizada e os médicos diziam que as chances dela se recuperar eram grandes. Essa esperança fazia com que o rapaz desse prosseguimento à vida sem se deixar abater por demais. Além disso, a leitura do diário do pai o mantinha ocupado, interessado e intrigado com o conteúdo. Ainda não conseguira entender ou sequer decifrar a maioria das páginas. As folhas faltando pareciam importantes e muitas vezes a caligrafia era totalmente ilegível. Mas ele prosseguiria com calma e paciência. No momento certo, quem sabe, desvendaria os segredos ali escondidos.

- “Patrão”...? – os pensamentos de Perez foram interrompidos por Rogério. Ele olhou para o seu funcionário parado à porta da oficina como se saísse de um transe. – O tal de Prado tá aí, quer falar com você...

Perez concordou com a cabeça e fez sinal que já ia atender. O que o engravatado enxerido poderia querer agora? Deixou de lado o computador que estava consertando, limpou a mão numa flanela apropriada e foi para frente da loja, ver o que seu visitante queria. Encontrou-o com um sorriso largo no rosto, cabelo esculpido com gel, camisa e calça social, de sapatos, mas sem gravata. Estendeu a mão para cumprimentá-lo e tão logo terminaram o cumprimento, procurou ir direto ao assunto.

- E então... queria falar comigo...?

- Sim. Estive pensando na última conversa que tivemos e tive uma grande idéia!

- Que seria...?

- Uma sociedade! O que acha? Eu andei pesquisando e procurando algo em que investir meu dinheiro, sabe, começar um negócio próprio e tal. Fiquei observando e estudando sua loja e acho que seria um bom investimento, pra nós dois! Podemos ampliá-la e... – Perez interrompeu-o.

- Ow, peraí... ficou “observando e estudando minha loja”? Quer dizer que andou me espionando? Que papo é esse?

- Calma, era apenas uma pesquisa de mercado, não fique bravo como se eu tivesse bancado o paparazzo em sua vida pessoal. E além disso, eu tenho de saber no que vou colocar meu dinheiro...

- Não vai colocar seu dinheiro. Não quero uma sociedade com você.

- Mas você nem viu minha proposta!

- E nem quero ver!

- Não seja burro, vai ser muito lucrativo pra você!

- Não quero saber. Não quero ampliar minha loja. Não quero seu dinheiro. Não quero sociedade. Você ficou louco? Eu mal te conheço!

- Não seja cabeça-dura... prefere ficar pra sempre com essa lojinha ganhando só para comer e cuidar da sua mãe? Vamos lá, tenha imaginação!

- Eu tenho imaginação. E quer saber o que mais? Eu tenho amor próprio e pra mim você não passa de um fanfarrão arrogante, um garoto mimado metido a esperto. Agora, se puder me dar licença, tenho de voltar ao trabalho. Na minha loja. Tenha um bom dia. – deu as costas para seu interlocutor e sem olhar para trás voltou para a oficina. Prado ficou parado, vendo-o partir. Olhou para Rogério, obviamente constrangido do lado de dentro do balcão: “Você tem um chefe muito idiota...”, disse, antes de dar as costas e ir embora.

*****

Prado saiu da loja de Perez quase furioso. Respirou fundo, contou até dez e recobrou o controle. Tinha de estar calmo, pois tinha uma entrevista de emprego num banco não muito longe dali. E já que a sociedade tinha sido um fracasso, melhor que conseguisse a vaga no banco. Ficar desempregado começava a ficar desesperador, as contas ainda estavam todas lá, mas o dinheiro só fazia diminuir. Pelo menos seu carro ficaria pronto logo e não teria mais de depender de metrô, ônibus ou caronas.

Chegou ao banco pouco antes que o suor começasse a incomodar. Passou pela porta giratória e se informou com um funcionário que vestia um colete laranja com os dizeres “Posso ajudar?”. Passou pelo segurança, pelos caixas e foi até a última mesa do fundo do banco, que estava vazia. Logo, um senhor de meia-idade, vestido de forma impecável e com óculos com um formato um pouco antigo no rosto apareceu, carregando alguns papéis.

- Pois não? – disse, solícito.

- Bom dia. Sou o Prado, vim para a entrevista. – respondeu, estendendo a mão para um cumprimento.

- Ah sim, sente-se aí, vamos conversar.

Prado sentou-se e conversaram por alguns minutos. Era uma vaga de gerente regional, função simples que ele poderia executar com maestria. O salário era baixo, comparado com o seu anterior, mas tinha chances de progredir no emprego e voltar a crescer profissionalmente, então, estava disposto a aceitar sem demora.

- Você tem um bom currículo, Prado, embora seu último salário esteja bem longe do que posso oferecer...

- Não tem problema, seu Waldir. Eu aceito começar de baixo e o salário que me propôs está ótimo de início. Não comecei ganhando esse salário no meu outro emprego, eu o conquistei com o tempo e se tiver uma oportunidade, vou agarrar com toda força.

O homem sorriu.

- Muito bom, esse seu espírito é inspirador. E suas referências do emprego anterior são muito boas, acho que você vai trabalhar pra mim em breve, Prado.

Foi a vez de Prado sorrir.

- Estou ansioso, sr.

Em seguida, a entrevista terminou. O currículo de Prado seria analisado, mas a entrevista tinha sido boa e ele tinha certeza de que até o fim da semana receberia a confirmação para começar no novo emprego. Enfim as coisas começavam a dar certo novamente. Já não era sem tempo! Saiu do banco caminhando de peito estufado, observando aqui e ali as moças que trabalhavam, avaliando qual poderia servir-lhe de “presa”. No entanto, assim que ganhou as ruas, sentia uma vontade muito forte de encontrar-se com Graziela. Estranho... será que estava se apaixonando por ela ou era apenas carência pelos problemas que vinha enfrentando ultimamente? Fosse o que fosse, ligaria para ela mais tarde, para contar a novidade. Sabia que ela ficaria feliz e o sorriso dela era tão belo que parecia ser capaz de iluminar um cômodo inteiro... opa! Melhor se controlar. Estava tão eufórico que estava beirando a cafonice com textos poéticos malucos! E isso não era nada bom para alguém racional como ele. Ligaria para ela de qualquer forma, mais tarde, apenas para dizer que estava se arrumando novamente.

*****

Embora tivesse expulsado sem muita elegância Prado de sua loja, Perez ficara o dia todo trabalhando com a proposta na cabeça, incomodando seus pensamentos e afetando sua concentração. Ampliar os negócios até que não era má idéia. Mas não podia depender de um sócio, ainda mais de um desconhecido como Prado. Até gostava dele, mas não a ponto de confiar para uma sociedade. Mas, ah, estava cansado. Trabalhara o dia todo. Agora, já noite, tinha acabado de sair do banho e preparou um lanche. Sentou-se no sofá e voltou a ler o diário enquanto comia. Achou, finalmente, algo interessante que não tinha notado antes. Um ritual de proteção contra demônios. E, depois do que vira, não tinha mais dúvidas em acreditar que tais coisas existiam. Terminou o sanduíche e o refrigerante, colocou na pia e voltou ao diário. Leu atentamente as instruções para o ritual. Parecia relativamente simples. Precisava basicamente de sal, alho, um símbolo religioso qualquer e... sangue? Hum, isso era difícil. E o pior, tinha de ser o seu próprio sangue. E agora? Faria isso? Parecia loucura. Mas, por outro lado, não custava tentar.

Preparou os ingredientes e juntou-os na oficina. Um círculo de sal no chão, alho nos quatro pontos cardeais e o símbolo religioso no centro. Com uma faca lavada com água corrente e fervida até evaporar, fez um corte no braço. Gemeu de dor, mas era tarde para recuar. O sangue pingou sobre o símbolo. Leu as palavras que havia no diário. Uma espécie de oração, em que língua, ele não sabia. Repetiu por três vezes. Nada aconteceu. Esperou mais um pouco e só havia o silêncio. Deu um suspiro de frustração. Como podia ser tão ingênuo e acreditar nisso tudo? Até as magias de Harry Potter pareciam mais autênticas. Levantou-se e com o braço ainda ensangüentado, subiu as escadas para lavar-se no banheiro.

Terminou de limpar o sangue e estava enxugando o braço e as mãos com uma toalha quando sentiu cheiro de fumaça. Teria deixado ligado o fogão. Correu para a cozinha e o cheiro vinha da oficina. Desceu pelas escadas como um raio e não podia acreditar no que via. Dentro do círculo de sal, onde fizera o ritual de proteção, havia uma pequena fogueira. As chamas elevavam-se e pareciam ganhar vida de repente. Algumas faíscas voavam pela oficina, o fogo parecia tomar forma, rostos surgiam e pareciam zombar dele. Assim que recuperou o controle foi procurar o extintor que estava na loja. Mas o fogo começou a se espalhar. Assim que atingiu os computadores que estavam para reparo, alguns monitores explodiram. E as chamas começaram a se alastrar e ganhar forma. Perez tentava lutar com o extintor, diminuir o fogo, mas parecia inútil. Um monitor explodiu logo ao seu lado, os estilhaços atingiram seu rosto e seu pescoço, a fumaça o fez tossir, perdeu o equilíbrio e caiu. Seus olhos lacrimejavam e sua garganta ardia, era difícil respirar. Acabou perdendo os sentidos.

*****

Miguel viu a fumaça de longe. Acelerou ainda mais seu carro, pois estava quase certo que aquele era um sinal nada bom. Assim que chegou à casa de Perez, teve confirmação de seus medos. O lugar estava tomado pelas chamas. Já podia ouvir sirenes ao longe, alguns curiosos juntavam-se na frente da loja, alguns até tentavam ajudar de alguma maneira, com baldes de água. Desceu do carro, olhou ao redor e viu que Perez não estava ali. Isso quer dizer que estava lá dentro. E isso também queria dizer que ele tinha de entrar, tira-lo de lá. Mas como? A porta de ferro da loja estava fechada. Com certeza, o vidro por trás dela já devia estar destruído, mas como passar pela porta? Teve uma idéia. Pediu ajuda a algumas pessoas que estavam ali. Pelo canto da loja, apoiando-se na parede e com a ajuda de dois homens, conseguiu subir o suficiente para alcançar o pequeno parapeito do segundo andar. Com muita dificuldade, conseguiu equilibrar-se sobre ele e forçar a janela da cozinha. Estava trancada, mas os vidros haviam se estilhaçado. Retirou o que pôde com a mão, tomando cuidado para não se cortar. Conseguiu abrir caminho o suficiente para entrar. O calor era infernal. O fogo lambia as paredes. Respirou fundo e conseguiu prosseguir. Olhou rapidamente no quarto e no banheiro, quase que totalmente destruídos e Perez não estava em nenhum dos dois lugares. Desceu as escadas, rezando para encontrar logo o rapaz, pois a fumaça já o estava cegando e sua garganta ardia com muita força. Caminhou abaixado, para evitar intoxicar ainda mais e encontrou Perez desmaiado perto da porta que ligava a loja à oficina. Chegou até ele e conseguiu fazer um apoio para carregá-lo. Arrastou-o até a frente da loja. Mas ainda não tinha como sair. Pelo barulho lá fora, no entanto, sabia que os bombeiros haviam chegado.

- Socorro!! – gritou, o mais alto que pôde – Aqui!! Estamos aqui!!

Ouviu um murmúrio, alguém gritou para se acalmar que iam tirá-los de lá. Em seguida, a porta de ferro começou a ser atingida com força. Miguel protegeu os olhos com uma das mãos, a fumaça mal permitia que ele os mantivesse abertos.

Felizmente, não teve de esperar muito. Alguns minutos foram suficientes para que os bombeiros conseguissem forçar a porta, erguê-la o suficiente para que fossem resgatados. Apenas um bombeiro carregando um machado entrou e ajudou Miguel a carregar Perez.

Nesse momento, Perez já estava recuperando os sentidos. Foi levado até uma ambulância, mas insistia estar bem. Mesmo assim, foi colocado numa máquina para fazer uma inalação, por causa da enorme quantidade de fumaça que respirara. Miguel o acompanhava.

- O que aconteceu? – perguntou, vendo a expressão desolada no rosto de Perez.

- Eu... não sei... (cof-cof)... – respondeu, hesitante, entre tossidas.

A conversa foi interrompida por um médico que ordenou que a ambulância levasse ambos para o hospital. A maca foi recolhida e, de sirene ligada, o veículo se dirigiu para o hospital mais próximo.

*****

Perez estava internado há horas. Não conseguia dormir. Ficava pensando no ritual, no incêndio e que tinha perdido praticamente tudo. Como poderia reconstruir a loja, pagar pelos computadores e tudo o mais que havia se queimado? Estava ferrado, totalmente. Como pagaria pelos cuidados médicos da mãe?

- Como está se sentindo?

Estava tão absorto em pensamentos que sequer notou a aproximação de Miguel, seu salvador.

- Estou bem... como entrou aqui? Não é horário de visitas.

- Eu tenho alguns amigos no hospital, isso me dá algumas regalias. – respondeu, parando ao lado de sua cama e colocando as mãos nos bolsos – E então, vai me contar o que aconteceu?

- ...Você não acreditaria... – divagou Perez, virando o rosto para o outro lado.

- Não acreditaria em quê? Que coisas estranhas têm acontecido, como pessoas malucas tentando te matar e incêndios misteriosos? Ah, qual é, me dá uma chance...

- Eu... não sei o que aconteceu...

- Tá, ok. Mas alguma coisa aconteceu. Notou algo estranho, sei lá, qualquer coisa?

Perez olhou-o de soslaio. Miguel suspirou e sentou-se na cadeira ao lado da cama.

- Vamos lá. Olha, escuta, eu quero ajudar. Eu não sou repórter. Na verdade, sou um agente federal. Por isso te procurei.

Perez olhou com os olhos arregalados.

- Calma. É que eu tenho uma teoria. Uma coisa bem louca e que pode envolver você ou não. Pelo jeito, é provável que sim.

- Que tipo de teoria?

- Uma coisa... hã... como eu vou dizer... você acredita em demônios?

- Bom... mais ou menos...

- É? E o que sabe então? Digo, sobre o assunto?

- Ah, eu andei lendo umas coisas... aliás, acho que o incêndio pode ter a ver com isso... eu fiz um ritual de proteção...

- Ritual de proteção? De onde tirou isso, da internet?

- Não, do diário do meu pai, que encontrei há alguns dias. Achei que era meio que besteira, mas decidi arriscar. Consistia em juntar sal, alho... e meu sangue...

Miguel levou a mão ao rosto.

- Isso não era um encantamento de proteção. O que você fez foi abrir a porta para os demônios.

Perez arregalou ainda mais os olhos, mas não disse nada. Miguel se levantou, pôs a mão em seu ombro.

- Descanse. Depois teremos muito que conversar.

Antes que Perez pudesse retrucar, seu interlocutor deu as costas e saiu apressado. O quarto permaneceu em silêncio absoluto e logo depois Perez adormeceu.

Na manhã seguinte, Perez conseguiu sair do hospital e voltar para o que restou de sua casa, que era muito pouco, aliás. Nem chegou a entrar nos destroços. Ficou olhando desolado da calçada por alguns minutos. Seus olhos estavam marejados, mas não deixou que as lágrimas rolassem.

- Oi, vim saber se está tudo bem.

Antes mesmo de virar-se, Perez sabia de quem era a voz macia, suave, que se dirigia a ele. Era Ana. Enfermeira que muito o ajudara a cuidar da mãe, uma amiga e, talvez, no seu íntimo ele sabia que desejava isso, algo mais.

- Parece que tudo acabou... – disse, contendo o choro.

- Não fica assim. Você vai se recuperar.

Aproximou-se dele, e deu-lhe um abraço. Ficaram abraçados algum tempo, depois, beijaram-se. Um beijo tímido, quase como se fossem adolescentes. Depois se entreolharam, tão logo o beijo terminou. “Hei...”, disse Ana, tentando parecer simpática e animar Perez. O rapaz deixou escapar um sorriso triste.

- Acho que só me resta uma coisa a fazer... – disse, desvencilhando-se dela.

Pegou o celular, ligou para um número que esperava nunca ter de ligar. Alguém atendeu do outro lado.

- Prado? É o Perez, tudo bem? Escuta... hã... ainda tá interessado em sociedade?