quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Episódio 9 - A Primeira Noite de um Novo Homem

O enterro da mãe de Perez fora numa tarde calma. Ventava um pouco e o sol escondia-se por entre as nuvens. Ana esteve ao seu lado o tempo todo, enquanto ele recebia as condolências dos amigos e conhecidos da falecida mãe. Prado ficara junto de Graziela, acompanhando de longe. Evitou cair no lugar comum e repetir clichês ditos nesses momentos delicados. Conhecia Perez há pouco tempo, mas era esperto, sacava rápido as pessoas e sabia que tudo que o sócio desejava era permanecer sozinho com sua perda. Por isso mesmo, nem se despediu quando o enterro acabou. Apenas entrou no carro junto com Grazi e foi para seu apartamento. Afinal, no dia seguinte o seu novo empreendimento finalmente entraria em vigor. Sabia que talvez não pudesse contar com Perez. Ele já havia sumido na noite anterior, durante a virada do ano, logo depois de sua mãe ter sido levada para o necrotério. Claro que a morte da velha senhora havia estragado os planos festivos de todos eles, mas não podia reclamar. Sabia o quanto o sócio era apegado à mãe e o quanto isso podia influenciar também nos negócios. O jeito seria tocar sozinho até que ele decidisse aparecer.

*****

Para espanto de Prado, logo no dia 2, o dia da reinauguração da loja, agora melhorada, lá estava Perez. Um pouco sisudo, é verdade, mas esse era mesmo o seu normal. Agia como se a morte da mãe tivesse ocorrido há tempos ou, talvez, nem tivesse ocorrido. Prado fingiu não se importar e começaram a trabalhar. Júlia, a funcionária nova, já havia chegado e Rogério estava dando-lhe alguns toques sobre a loja. A garota acompanhava atentamente e Prado ficou observando-a por uns momentos. Mais especificamente seus seios.
- Olha o assédio... - brincou Perez, passando por ele e dirigindo-se ao fundo da loja, para que pudesse subir à oficina.
- ...Ow... - retrucou Prado - Que é isso, só tô prestando atenção nas instruções do Rogério, pra ver se ele explica tudo certinho... - riu.
Enfim, Perez parecia ter se recuperado bem e rápido da morte da mãe. O que para Prado era ótimo, pois, podia entender de gerência e contas bancárias, mas não sabia muita coisa de informática. Sendo assim, ficou feliz que o sócio voltasse aos trilhos para que o novo negócio fosse bem.
Com esses pensamentos passando pela cabeça, aproximou-se de Júlia e Rogério, que aguardavam os primeiros clientes.
- E aí, Júlia, Rogério, tudo bem? - perguntou Prado, tentando se enturmar.
- Tudo bem. - responderam os dois, quase em coro.
Prado notou que ambos ficavam um pouco constrangidos na sua presença, principalmente a garota, talvez por se tratar do primeiro dia de trabalho dela. E como ainda não eram nem nove horas da manhã, Prado achou melhor deixar os dois se acostumarem um com o outro e ela com o novo emprego e voltar mais tarde, depois de cuidar de alguns assuntos, que incluía uma nova vaga de emprego, a de gerente do bar onde Graziela trabalhava. Não era bem o que ele estava procurando, mas seria melhor do que continuar desempregado.

*****

A entrevista de emprego fora melhor do que Prado esperava. O salário era ridículo se comparado com seu salário anterior, mas o dono do bar e amigo de Graziela ficara tão interessado que talvez logo ele pudesse propor umas mudanças e melhorias. Quem sabe uma sociedade?
Sonhando alto, Prado parou em frente à sua loja. Estava na hora do almoço. Passou pela porta de vidro e a cara de tédio dos funcionários não era nada animadora.
- Dia devagar? - perguntou.
- É, primeiro dia é meio assim mesmo, até os clientes saberem que já voltamos à ativa. - respondeu Rogério.
- Bom, tá na hora do almoço, quem tá com fome? - os dois ficaram um tanto quanto constrangidos em responder, mas Prado continuou - Vamos lá, eu pago o almoço.
- Bom, vai você então Júlia, depois eu vou... - disse Rogério, sendo gentil.
- Não, o que é isso, vamos todo mundo.
- Mas a loja não fecha no almoço. - retrucou.
- Eu sei. O Perez tá aí?
- Tá lá no fundo.
- Então espera.
Passou pelo balcão, atravessou a lan house por entre os computadores desertos e subiu pela escada. Antes de chegar ao topo, ouviu Perez ao celular: "Tá ótimo, essa noite. No Fashion Frame. Mas você tem certeza mesmo? Então tá, depois das 11... até". Prado sabia que era deselegante ouvir a conversa alheia, mas o tom sério e de preocupação de Perez era muito suspeito. O que poderia ele estar marcando no Fashion Frame para essa noite?
Terminou a subida e achou melhor anunciar sua presença:
- Perez, tá ocupado? - disse, pondo a cara na oficina, onde antes ficava a cozinha do seu sócio.
Ainda com o celular na mão, Perez balançou negativamente a cabeça.
- O que foi? - quis saber, guardando o celular e procurando disfarçar que falava ainda há pouco.
- Vou levar os dois pra almoçar, você não quer ficar lá no balcão não?
Perez olhou para Prado com um meio sorriso: "Tá bom, 'chefe'", brincou.
- É isso aí, - prosseguiu Prado - e vê se faz direitinho senão desconto do seu salário no fim do mês. - terminou, com uma piscadela e apontando o dedo como uma arma para Perez.

*****

Prado estava acostumado a comer em restaurantes caros, mas já que a grana começava a ficar curta, levou seus dois funcionários num restaurante mediano mesmo. E conforme foram comendo, a conversa foi fluindo com mais facilidade e todos foram ficando mais à vontade. Era exatamente o que Prado planejava, pois sabia que um bom relacionamento com os funcionários era um dos principais responsáveis pelo sucesso de qualquer pessoa. Além disso, Júlia tinha um corpo bonito e seios maravilhosos. Não que estivesse pensando nisso, mas... bom, era uma possibilidade.
- Mas eu achei legal o nome da lan: Perez & Prado. - disse Júlia, interrompendo os pensamentos lascivos de Prado.
- Hum. E por que achou legal? - quis saber Prado.
- Ora, por causa do Perez Prado! - animou-se a jovem.
- Perez Prado...?
- Ah, não acredito! - indignou-se ela - Você não conhece Perez Prado?
- Não. Você conhece Rogério?
- Também não...
- Ah, Perez Prado, o "rei do mambo"! Nunca ouviram Caballo Negro, Tequila ou La Pantera Mambo?
Ambos, Prado e Rogério, continuaram com cara de "ué".
- É bom? - arriscou-se Prado.
- Nossa, é muito bom. Vocês têm de conhecer o "Noites Cubanas", a melhor casa de salsa, merengue e mambo que eu já fui.
- E pelo jeito você adora. - suspeitou Prado.
- Sim, eu gosto muito. Vocês deviam conhecer. Vale muito a pena.
- É, fiquei interessado... e aí, Rogério, você topa?
- Ah, pode ser. Parece bom. Podemos chamar o Perez também.
Nesse momento Prado lembrou-se da estranha conversa de Perez mais cedo ao celular. Achou melhor investigar. Terminaram o almoço e voltaram para a loja. Prado passou o restante do dia praticamente o tempo todo ao lado de Perez, procurando descobrir alguma informação sobre a tal Fashion Frame. Prado sabia que se tratava de uma boate, mas não conseguia imaginar o que Perez poderia procurar por lá. Será que seu sócio estava atrás de drogas? Estaria ele lidando com a morte da mãe por meio de substâncias alucinógenas e ilícitas? Como descobrir? Bom, só tinha um jeito, ir pessoalmente à tal boate.

*****

Quando a noite alta chegou, Prado foi para a tal boate. Nunca tinha ido até lá, o lugar não tinha muita fama. Parou o carro do outro lado da rua e ficou de campana. Frente à boate, dois seguranças recebiam os clientes. Havia uma única porta, grande, mas apenas com um dos lados abertos. O letreiro em neon acima da porta tinha letras grandes e coloridas e podia-se ler Fashion Frame, estilizado.
Não muito depois das onze horas, finalmente Prado percebeu Perez chegando junto com Miguel. A coisa começava a ficar ainda mais suspeita. Desceu do carro assim que eles entraram e foi para a entrada, não podia correr o risco de perdê-lo no meio da multidão que poderia haver lá dentro. Mas assim que passou pela porta e pelos seguranças, deu de cara com Perez e Miguel, junto a um balcão, onde uma das atendentes pegava o nome de cada um para entregar a comanda de consumo.
- O que você tá fazendo aqui? - perguntou Perez, espantado.
- Eu... hã... ah, saí pra dar uma volta, a Graziela tá trabalhando então eu vim sozinho... - mentiu Prado.
- Mas aqui?
- É, qual o problema? E você, também saiu pra dar uma espairecida?
- Não... - respondeu, com uma cara de rejeição - Vim resolver um assunto.
- Ah, legal. A gente pode aproveitar pra curtir então, já que estamos aqui...
- Não... - repetiu-se Perez, ainda com cara de contrariado.
Enfim, entraram. A boate não estava muito cheia, mas também não estava vazia. Ao lado direito havia um grande balcão com moças e rapazes servindo aos clientes. Bebidas com cores vivas e brilhantes, como verde limão e pink, pareciam ser as preferidas. À frente, mais para a esquerda, dezenas de pessoas se movimentavam na pista de dança. Luzes piscavam na parte de cima e podia se perceber um andar superior rodeando todo o salão onde, possivelmente, eram os camarotes. Ao lado da pista de dança, mais à esquerda, numa espécie de tubo enorme, uma garota seminua dançava ao sabor da música. Na mesma estrutura, mas no "segundo andar", era um jovem de corpo musculoso e roupa colada que se remexia ao ritmo da música eletrônica.
- Pô, até que é legal... - disse Prado, mas só depois percebeu que estava sozinho, seus dois "companheiros" já tinham se achegado junto ao balcão. Aproximou-se e tentou ouvir o que Prado e Miguel conversavam com um dos barman, mas para isso, teve de enfiar-se num pequeno espaço, empurrando com as costas o rapaz que o separava do seu sócio. Tentou prestar atenção, mas foi interrompido com um respirar pesado no seu pescoço, logo abaixo da orelha:
- Calma gato, não precisa empurrar...
A voz era rouca e grossa, embora o dono forçasse o máximo para afiná-la. Sabia que não era de uma mulher. Olhou para trás e o rapaz tinha um olhar malicioso.
- Hã... foi mal, desculpa...
- Não tem problema. Meu nome é Michael, e o seu?
- Eu me chamo Prado... Pedro Prado...
- Hum, e você é novo aqui, não? Nunca te vi e conheço a maioria das pessoas que vem aqui.
- É, não, é que, hã, eu só tô de companhia com ele... - apontou para Perez, que nem lhe dava atenção.
- Hum, que pena...
- Não... - riu nervosamente - nós somos sócios, é só negócios...
- Sei... - riu o rapaz, ainda mais malicioso.
- Tá, dá licença tá.
- Tem toda, gato.
Perez foi para o outro lado, e entrou logo à frente de Perez, empurrando um pouco Miguel.
- Cara, o que você veio fazer aqui, fala a verdade? Tem um cara me cantando aqui atrás, o que é isso?
- Claro que tem um cara te cantando, você esperava o quê, uma mulher? - respondeu Perez, impaciente, enquanto esperava pela volta do barman.
- Ué... lógico! E você, não?
- Então por que você veio numa balada gay?
Prado ficou sem reação por um momento. A Fashion Frame... era uma balada gay? Bom, fazia sentido. Mas isso quer dizer que Perez... óh, coitada da Ana quando descobrisse.
- Eu sei o que tá pensando... - disse Perez - e não é nada disso, eu vim aqui resolver uma coisa. E você? - perguntou, desconfiado.
- Tá, eu admito... eu tava te seguindo.
- Você tá ficando louco?
- Foi mal, mas eu pensei que você podia, sei lá... - não terminou, pois Miguel chamou por Perez.
- Vem, já sei em qual camarote ela tá. É lá em cima, onde fica o dinheiro.
- Prado, fica aqui e vê se não arruma nenhuma confusão. Não vai ter ataque de homofobia senão você morre aqui.
- Ataque de homofobia? - indignou-se - Se liga, não faço discriminação por alguém ser gay! - gritou enquanto Perez se afastava, guiado por Miguel. Ao seu lado, alguns rapazes olharam, com cara animada. Prado percebeu, tentou disfarçar e achou melhor apenas apontar para Perez e dizer "Eu tô com ele, tô com ele...".

*****

Já tinha quase meia-hora que Perez e Miguel haviam desaparecido. Prado estava no segundo drinque, achou melhor ir devagar, pois tinha de dirigir e não podia correr o risco de ficar simpático demais, não aqui, afinal, alguém podia interpretar errado sua simpatia. Se bem que, podia não ser de todo ruim... por exemplo, havia duas garotas numa mesa próxima que eram realmente bonitas. Uma loira de cabelos curtinhos, cheinha, mas não gorda, apenas não magra como essas modelos esqueléticas que se vê por aí e a outra, morena de cabelos cacheados, também um pouco mais cheinha do que as magrelas que Prado estava acostumado. Mas eram bonitas. Quem sabe não rolava alguma coisa entre os três? Humm... afinal, qual homem já não sonhara em pegar duas mulheres de uma vez? Hahahaha! Se esforçou para não cair na gargalhada, no momento em que as duas o notaram. Conseguiu se conter e deu um sorriso, levantando apenas uma das sobrancelhas. A resposta das duas foi um beijo molhado, que faria Prado corar, se não o deixasse tão excitado.
- Eu consigo ler sua mente... - alguém sussurrou ao seu lado, assustando-o. Virou-se e encontrou uma moça morena, não devia ter mais de trinta anos. Tinha os cabelos longos e lisos, seus olhos tinham uma luz que quase os fazia brilhar, ainda que fossem pretos. Vestia um bustiê trabalhado com alguns detalhes em vermelho e uma calça jeans com a cintura mais baixa que ele havia visto até agora. Ficou sem fala por um momento, apenas observando a linda jovem, sua cintura esguia e fina se alargava no quadril e a calça colada deixava isso ainda mais evidente.
- Ainda consigo ler sua mente... - provocou.
- Se pudesse ler a minha mente, você me daria um tapa... - brincou Prado - Ou me levaria pra um lugar mais reservado... - concluiu, reclinando-se e aproximando seu rosto do da garota.
- Hummm... Quer dançar? - convidou, colocando a mão no peito de Prado.
- Ei, espera... - respondeu, caindo em si - Acho que não vai rolar, eu só vim resolver um assunto com um amigo, não leve a mal, mas eu sou hetero e tal... você é mulher mesmo?
Ela riu. Uma gargalhada gostosa e zombeteira.
- Claro que sou mulher, gato. Posso te mostrar depois da dança, se quiser... - continuou provocando, puxando o pelo braço para a pista.
Prado sorriu.
- Nesse caso, acho que uma dança não vai fazer mal nenhum...
Foram para a pista, a garota dançava envolvida pela música. A batida eletrônica havia sido substituída por Into the Night, de Santana e Chad Kroeger. E Prado achou muito apropriado, afinal, a jovem parecia mesmo ter fogo em sua alma. Ele tentava acompanhar seu ritmo, mas ela era pura excitação. Ele não conseguia tirar os olhos dos seus seios, de sua cintura e de seu enorme, mas bem definido, traseiro. A calça era tão baixa que cada vez que ela virava de costas, ele quase conseguia ver o início de suas nádegas. E ela continuava provocando, colocava os braços sobre seu ombro, um de cada lado, fazia menção de beijá-lo e então, se virava de novo, esfregando seu corpo no dele.
De repente, o barulho de um tiro pôs todos em alerta. Seria mesmo o disparo de uma arma de fogo? Antes que alguém tivesse alguma reação, houve outro tiro, dessa vez estilhaçando um vidro de um dos camarotes no andar superior. E foi suficiente para que o salão virasse um pandemônio e as pessoas procurassem a saída, se empurrando e se atropelando. Prado ainda estava sem reação, preocupado com Perez. Notou que a garota também não se moveu logo. Depois fez uma cara de insatisfeita e foi em direção à escada de ferro que levava ao segundo andar.
- Espera! Onde você vai? - interpelou Prado, segurando-a pelo braço.
- Resolver um problema. - disse a garota, sem nem prestar atenção nele e desvencilhando-se dele.
Em seguida, ela subiu as escadas e Prado decidiu segui-la. No andar de cima, ao lado do espaço onde ficava o DJ, pôde ver Prado e Miguel. O segundo tinha uma arma, e dois seguranças estavam rendidos no chão. O vidro da sala do DJ havia sido estilhaçado com o tiro.
- Muito bem, venha para cá, bem devagar! - griou Miguel, apontando a arma para a moça. Prado estava bem atrás dela.
- O que vocês querem? Dinheiro? Está no cofre. É só pegar e ir embora. - gritou, sem se mover, a jovem.
- Não queremos o seu dinheiro, você sabe disso. - retrucou Perez.
A moça se aproximou. Estava há cerca de dois passos de Miguel, que mantinha a arma apontada. Perez tentava se aproximar, tinha uma pequena faca, um canivete parecia. Mas Prado não conseguia prestar atenção. A cena toda era surreal demais. Queria correr dali, mas tinha medo de levar um tiro do maluco com a arma.
- Cara, você tá ficando louco? - conseguiu dizer enfim, virando-se para Perez, que se aproximava com o canivete. Achou que ia extripar a moça.
- Prado, sai daqui, agora! - gritou Perez.
O momento de distração foi o suficiente para que, num movimento rápido e inesperado, a garota partisse para cima de Miguel, desviando sua mão do alvo e, com um golpe que parecia não conter força, jogá-lo contra a parede. Miguel bateu com as costas e caiu, derrubando a arma, e foi a vez da garota acertar um tapa com as costas da mão em Perez, que foi cair quase dentro da sala de som do DJ. Prado observava atônito, sem entender, espantado com a força da mulher. Ela apanhou a arma no chão, ignorou Miguel, ainda caído, mas tentando se levantar e foi até Perez, do outro lado. Agarrou-o pelo pescoço e levantou-o sobre sua cabeça, com apenas uma das mãos.
- Últimas palavras? - perguntou.
Perez não respondeu. Ao invés disso, deu uma cusparada de sangue na mulher, que gritou e deixou que ele escapasse de sua mão. O sangue parecia conter ácido, pois os gritos dela davam a impressão de que estava sentindo uma dor lancinante. Perez mal caiu no chão e já se levantou num pulo, agarrando a mulher que berrava. Esfregou-se no sangue no rosto dela e, de repente, a dor pareceu transferir-se para ele. Em poucos instantes a jovem estava desfalecida no chão e Perez arfava ao seu lado, como se começasse a se recuperar. Por um momento, Prado podia jurar que o sócio rosnava.
De repente, despertou do trase em que se encontrava com Miguel ajudando Perez a se levantar.
- Rápido, a polícia não vai demorar, temos de ir embora agora! - Prado não se mexeu - Vamos! - gritou e, só então, Prado voltou a si. Ajudou Miguel a carregar Perez, que parecia sem forças. Chegaram ao carro, Miguel apenas agradeceu e partiu. Prado ficou ali, sozinho, sem entender. Finalmente correu para o seu carro, entrou, deu a partida e acelerou o máximo que pôde, sem saber direito qual seu destino. Tudo que sabia é que Perez tinha muita coisa para explicar.

terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Já fazia dias que Prado vira seu sócio e companheiro de apartamento chegar com as mãos banhadas em sangue, num estado que parecia de choque. No entanto, não ousara perguntar o que havia acontecido. Ao invés disso, no dia seguinte, apenas fingira que não havia nada de errado e continuaram com a reconstrução da loja de informática. Perez falava pouco. Na verdade, agia de forma estranha, por vezes misteriosa, principalmente quando falava com o tal amigo Miguel. Isso irritava um pouco Prado, fazia-o sentir-se excluído, mas não tinha intimidade suficiente com o parceiro para qualquer tipo de cobrança pessoal. Mas, depois de três dias de quase total silêncio, tentou puxar algum assunto mais animado.
- E aí, tá chegando o Natal... Já tem planos? – perguntou, enquanto almoçavam num restaurante próximo à loja.
Sem se alterar, Perez apenas desviou os olhos para ele por um momento, terminou de engolir a comida que estava mastigando e respondeu, sem emoção.
- Não gosto muito do Natal. Talvez eu durma... – continuou comendo.
Prado ficou espantado, mas não demonstrou. Continuou comendo. Terminaram a refeição e o dia passou como uma tortura para ele. O clima depressivo de Perez era como um odor desagradável que infestava o ambiente e o incomodava por demais. Sabia que a mãe do rapaz estava em coma, mas, puxa, a vida continuava! Viver como um miserável não mudaria o estado da mãe, não iria fazê-la sair do coma. Mas tudo bem, não seria ele que iria dizer isso. Mas, por via das dúvidas, sairia à noite para relaxar um pouco. Graziela estaria de serviço hoje e seria uma boa passar umas horas em sua companhia, mesmo sabendo que ela mal teria tempo para conversar. Mas era bom vê-la em seu uniforme de bargirl. Isso o fazia lembrar-se dos tempos em que o dinheiro entrava como água e alguns funcionários o idolatravam. Ah, o poder... realmente fazia falta às vezes.

*****
A noite de Prado fora ótima. Principalmente porque metade das bebidas que tomava era por conta da casa, afinal, ele namorava a bargirl preferida do lugar. Pensar na palavra “namoro” o fizera estremecer por um momento, mas já era muito tarde, estava cansado e com sono. Graziela o havia deixado em seu prédio há poucos minutos. No dia seguinte ligaria para saber se o carro já ficara pronto. Também ligaria para o gerente do banco para perguntar a respeito da vaga, pois já esperara demais.
Entrou no apartamento tentando não fazer muito barulho, afinal, não queria incomodar seu hóspede e sócio. Fechou a porta devagar, passou pela cozinha à direita, logo depois da sala e apenas pegou uma garrafa de água mineral na geladeira. Saiu e seguiu em frente pelo corredor, entrou no quarto, tirou os sapatos e despiu-se quase por completo, ficando apenas de cueca. Foi até a suíte, lavou o rosto, escovou os dentes e passou seu creme para as mãos. Voltou para o quarto, tomou um gole de água e, depois de deixar a garrafa descansando no criado mudo ao lado da cama, deitou-se e não demorou a pegar no sono. Porém, sua soneca não durou muito tempo. Logo foi acordado pelo barulho do celular de Perez e pôde perceber que o rapaz estava se movimentando pelo quarto. Não demorou muito e ouviu o barulho das chaves na sala e soube que ele tinha saído. Voltou a dormir.

*****

Prado acordou novamente, com um barulho de alguém mexendo no apartamento, pelos ruídos, achou que fosse na cozinha. Levantou-se cautelosamente. Abriu a porta devagar, armado apenas dos punhos. Não poderia ser Perez, ouviu quando ele saíra de manhãzinha. Que horas devia ser? Não fazia idéia, mas o sol já invadia a sala pelas frestas da cortina da varanda. Enfim, chegou até à porta da cozinha, olhou com cuidado, e tomou um susto. Não por encontrar um invasor, nada disso, afinal, era apenas seu sócio preparando o café. O susto ficou por conta da mesa cheia de guloseimas, sucos e frutas preparada para o café da manhã. Perez virou-se para Prado assim que o notou.
- Ah, bom dia! Eu preparei um café da manhã, se não se importa...
- Não, não... tudo bem... – respondeu Prado, espantado e desconfiado da atitude do rapaz.
- E se não tiver problema, eu trouxe uma pessoa pra tomar café e queria que você conhecesse. Está na sala.
Prado não disse uma palavra. Apenas recuou alguns passos e olhou para a sala. Quem seria a misteriosa visita que fizera uma mudança tão drástica no humor de Perez? Seria o tal Miguel, seu amigo/namorado ou sei lá o que? Logo que se aproximou do fim do corredor e pôde ver o sofá, soltou um suspiro de alívio. Os cabelos grisalhos e a pele enrugada deixava óbvio que não era nada do que estava pensando. Como pôde ser tão idiota? Era lógico que a pessoa, a única que poderia , talvez, causar tamanha transformação em Perez, era sua mãe.
- Oi, bom dia... – disse Prado, hesitante.
- Óh, bom dia! – disse a velha senhora, se levantando – Você deve ser Prado, sócio do Perez... – concluiu, enrubescendo um pouco.
- Sim, sou eu. Então a senhora melhorou? Que bom! – respondeu Prado, sorrindo e procurando a razão da velha ficar com o rosto corado. Então percebeu que estava só de cueca e, provavelmente, isso estava constrangendo a pobre senhora – Me dá licença que vou colocar uma roupa, fique à vontade.
Correu de volta para o quarto e tratou de vestir uma camisa e uma bermuda. Depois de trajar-se adequadamente, voltou à sala, mas mal começou a conversa com a mãe de Perez, foi interrompido pelo mesmo.
- Prado, eu vou levar minha mãe até o Retiro. Mas de tarde a gente se encontra na lan house. Precisamos contratar alguém, temos algumas entrevistas marcadas para hoje, lembra?
- Ah sim, claro... – divagou Prado – A gente se vê depois, então.
Despediram-se e tão logo Perez e a mãe saíram do apartamento, Prado aproveitou para ir à cozinha e atacar os quitutes que o rapaz havia preparado.

*****

Horas depois, ambos se encontraram em frente à reformada loja de Perez, agora transformada também em lan house. O esquema da loja continuaria basicamente o mesmo, mas ao invés de manter a oficina nos fundos, ela seria transferida para o andar superior, dando lugar assim para os vinte computadores ligados em rede.
Prado, que havia acabado de recuperar seu carro, devidamente consertado, tateava entre algumas chaves procurando a certa para abrir a porta de metal da entrada. Um pouco impaciente, Perez tomou-lhe o molho das mãos e encaixou a chave na fechadura, girando no sentido anti-horário e destravando a porta. Começou a levantá-la e, assim que Prado apoiou-se por baixo para ajudá-o, ele tentou quebrar o gelo.
- Então... planos para o Natal? – perguntou Perez, não muito animado.
- Hum... nada ainda... – respondeu Prado, ainda mais sem ânimo.
- E sua família?
- Meus pais moram longe. E, no momento, não posso me dar ao luxo de viagem de férias...
- Certo. Tava pensando numa pequena ceia no seu apartamento, o que acha? Só a gente.
- Só a gente...? Tipo, só nós dois, como um...
Perez interrompeu-o.
- Não, só a gente próxima eu quis dizer. Eu, você, minha mãe, sua namorada, a Ana...
- Quem é Ana?
- É uma das enfermeiras que cuidam da minha mãe.
- Sei... e seu amigo, como ele chama mesmo?
- Miguel.
- É, e o Miguel, não vai convidá-lo?
- Não.
- Vocês... hã... brigaram? Ou algo assim?
- Não, mas ele não é tão meu amigo assim.
- Certo. Legal. Acho uma boa idéia.
A essa altura, a porta já estava aberta. Então os dois concordaram com um aceno de cabeça e entraram, pois logo os candidatos à vaga estariam chegando.

*****

Horas e vários candidatos depois, Perez e Prado já haviam entrevistado algumas pessoas. Rogério recepcionava-os na parte da frente da loja e, um a um, os mandava para a entrevista, na parte dos fundos, onde agora era a lan house. Depois da entrevista, o candidato voltava para a parte da frente, onde ficava aguardando por algum veredicto. Havia bons candidatos, mas o mais difícil era que os dois tivessem opiniões de acordo. Enfim, no crepúsculo, concordaram, pelo menos, em chegar a uma conclusão.
- Pra mim parece óbvio que devemos contratar a Júlia. – começou Prado.
- Não, vamos contratar o Marcelo. – discordou Perez.
- O quê? Por quê? A Júlia é perfeita! Ela é formada em informática, tem curso de hardware e tá no primeiro ano de sistemas de informação. Qual o problema?
- O problema é que não é por isso que você quer contratá-la. Você a escolheu por causa dos olhos azuis, dos cabelos cacheados e dos peitos grandes e empinados.
- Qual é...? Eu nem reparei nisso...!
- Claro. Vamos contratar o rapaz. Não quero correr o risco de você se envolver com uma funcionária. Depois ela nos processa e aí estamos ferrados. Eu vi “Assédio Sexual” e, acredite, você não é o Michael Douglas.
- Que papo mais estapafúrdio é esse? Ela é boa! Quero dizer, tem boas qualificações! Além do mais, o cara também pode nos processar por assédio.
- Por quê? – espantou-se Perez, olhando de relance para Prado, voltando a examinar as fichas dos candidatos logo em seguida – Você é bissexual?
- Não! ...Mas e se você for?
- Muito engraçado. Vamos contratar o Marcelo.
Prado respirou por um momento. Isso não estava dando certo. Tudo bem que os dotes físicos da garota o haviam deixado de queixo caído, mas isso não quer dizer que ela não era competente.
- Você está sendo preconceituoso... – voltou a argumentar.
- E você, safado. – retrucou Perez.
- Tá, vamos dar uma chance. Um teste, sei lá, alguma coisa assim, na semana que vem, depois do Natal, o que acha?
Perez suspirou.
- Tá legal. Afinal, as qualificações dela são mesmo boas. Vamos pedir para que eles retornem na semana que vem e a gente faz um teste.
Prado sorriu.
- Assim é que se fala, “chefe”. – zombou, terminando com um tapinha nas costas.

*****

Era véspera de Natal. Perez mal podia esperar para buscar sua mãe no Retiro. Ainda mais porque Ana havia aceitado seu convite para a ceia. Talvez ele conseguisse um pouco de felicidade enfim. Nada de demônios, nada de maldições ou histórias loucas para bagunçar sua vida. Só um pouco de felicidade com a família e os amigos. Amigos. Engraçado. Nunca tinha tido amigos muito próximos e, de repente, Prado começava a tornar-se mais do que apenas um sócio comercial, apesar das diferenças todas entre eles. Pelo menos o rapaz era engraçado, divertido e otimista. E talvez ele precisasse mesmo de um pouco disso em sua vida.
Nesse momento, Prado chegou, mal esboçou um “fala aí” e foi para o banheiro. Perez aproximou-se da mesa da sala de jantar, que ficava na outra extremidade da sala e observou algumas cartas que seu companheiro deixara sobre a mesa.
- Então... tá tudo bem? – gritou, para que Prado o ouvisse do banheiro.
- Tudo bem nada. Passei no banco que fiz a entrevista. O emprego “miou”. O gerente acabou dando pra trás e contratando uma burra peituda qualquer...
- Ah... por que será que isso me soa como justiça irônica?
- Muito engraçado. – disse Prado, aparentemente com a calma recuperada e saindo do banheiro.
Quando chegou à sala, encontrou Perez fuçando em sua correspondência, com um sorriso largo aberto na cara.
- Que foi? – perguntou.
- Seu nome... é Pedro Prado? – disse Perez, quase não se contendo.
- Sim, por quê?
- Hahaha! Isso é hilário...!!
- E posso saber por quê? Quem sabe eu consiga dar algumas risadas também?
- Sabia que quando a Marvel começou a publicar quadrinhos no Brasil, o nome do Homem-Aranha foi traduzido de Peter Parker para Pedro Prado?
- Tá, e daí? Grande coincidência.
- E daí que Pedro Prado é um baita trava-língua! Tenta dizer três vezes: o pé do Pedro Prado é preto! Hahaha!
- Ah tá... e... e... o seu nome que é Daniel Perez?
- E daí, qual o problema?
- O problema é que você é praticamente a versão masculina daquela atriz que foi assassinada pelo cara do elenco da mesma novela, a Daniela Perez! É bem pior, tá vendo?
- Cara, você é louco... Bom, vou buscar minha mãe, quer ir junto?
- Não, vou tomar um banho.
Nesse momento, o celular de Perez tocou. O rapaz pegou o aparelho na mão, conferiu a ligação, mas não o atendeu. No entanto, fez uma expressão de insatisfação.
- Que foi, alguma coisa errada? – preocupou-se Prado.
- Não, não é nada. É só o Miguel. Depois eu falo com ele... quando estiver afim... – dizendo isso, apanhou as chaves do carro e partiu.

*****

Já passava das dez da noite quando Graziela finalmente tirou o peru do forno e puderam começar a refeição. Todos estavam bastante empolgados e falantes, apesar da pouca intimidade entre eles. Tão logo deu meia-noite, a mãe de Perez, alegando estar muito cansada, pediu pra se retirar. Perez se prontificou em deixá-la à vontade e dormir no quarto em que ele ocupava. Depois disso, perguntou a Prado se poderia hospedar a mãe nesses dias de festa, até o ano novo, pelo menos.
- Claro, tudo bem. Só que você é quem vai ter de dormir no sofá... – brincou.
Como Graziela e Prado haviam preparado quase toda a ceia, Perez e Ana se ofereceram para lavar a louça. Nada mais justo, foram os dois para a cozinha.
- Então, já tem planos para o ano novo? – perguntou Perez, com um brilho infantil nos olhos.
Ana sorriu, quase que timidamente.
- Estou... hã... estudando as opções.
- Hum... e passar a virada junto com a gente é uma boa opção?
- Depende...
- Do quê?
- Junto com “a gente”? Ou junto com “você”?
Perez ignorou então que suas mãos estavam até o pulso de espuma e detergente e beijou Ana, que retribuiu apaixonadamente. Poucos minutos depois, estavam com as roupas parcialmente molhadas e respiração ofegante.
- Sabe... sua mãe vai ficar no seu quarto... é natal...
- Sim...?
- ...Meu apartamento não é longe daqui... se quiser conhecê-lo...
Perez sorriu. Em seguida, passaram apressadamente pela sala.
- A gente vai dar uma saída, Prado. E deixa que de manhã eu lavo a louça, prometo. Qualquer problema, liga no meu celular. Tchau pra vocês.
O casal que estava na sala apenas sorriu e se despediu. Em seguida, foi Prado que reiniciou a conversa.
- Então, Grazi, meu amor... parece que estamos enfim sós...
- Ah tá... isso se você desconsiderar a doce velhinha dormindo no outro quarto.
- É, tem isso. – fez uma pausa, depois recomeçou – Sabe Grazi, nunca fui muito de rotinas, mas por mais que minha vida fosse movimentada, sempre tive certo controle sobre as coisas. Sobre meu emprego, meu salário, sobre o que é meu. E agora estou um pouco ainda assustado com tudo que está acontecendo, tipo, não tenho um emprego, estou investindo praticamente todo meu capital numa loja que pode dar prejuízo... – fez outra reflexão, só depois de alguns segundos continuando – Então, apesar de tudo isso, eu estou gostando dos desafios e do que está acontecendo. Estou gostando de “não saber” o que vai acontecer. É excitante, sabe? E... como eu vou dizer isso... hã... você me conhece há um bom tempo e sabe que eu nunca fui de me envolver muito, mas, tudo muda. E dentre todas essas mudanças que te falei, acho que, a melhor na minha vida, foi estar com você. Quero dizer, sei lá, estou gostando de estar com você, da sua companhia, da ansiedade pra poder vê-la de novo... acho que estou... como é a palavra... apaixonado?
O rosto de Graziela estava iluminado e o sangue subia-lhe à face, dando às suas bochechas uma coloração avermelhada. No fim, não pôde dizer nada, apenas esboçou um sorriso cúmplice e fez um afago no braço do seu declarante.
- Então, que tal desligarmos a tv, irmos até o quarto... ainda tem bastante daquele óleo de massagem... – sorriu maliciosamente.
- Eu estava me perguntando, - disse ela, enfim – quando é que sua conversa ia terminar na parte em que você me leva pra cama... – riu.
- Pois é. Algumas coisas nunca mudam. – terminou ele, levantando-se e beijando a mão dela, para que o acompanhasse.

*****

No penúltimo dia do ano, a lan house finalmente estava prontinha para ir a funcionamento. Mas ainda faltava contratar um funcionário para juntar-se a Rogério. Sendo assim, por volta das nove da manhã, Perez, Prado, Marcelo e Júlia estavam reunidos para resolverem a questão e colocarem fim ao suspense.
Iniciaram o teste, que durou pouco mais do que quinze minutos, afinal, não era nada muito complexo para quem tinha conhecimento profundo em informática. Marcelo terminou primeiro, poucos minutos antes de Júlia. Os dois sócios deixaram os pretendentes ao cargo na loja e se reuniram na ante-sala ao fundo, agora a lan house.
- E então, Perez, o que você acha...?
- Acho que o Marcelo sabe um pouco mais do que a Júlia.
- É, eu também acho... – concordou Prado, um pouco decepcionado.
- Mas vamos contratar a Júlia.
- O quê? Mas você acabou de dizer que o Marcelo sabe mais... – retrucou Prado, sem entender.
- Sim, mas analisa comigo... a Júlia tá no primeiro ano de faculdade e precisa do emprego pra bancar a faculdade. Logo, ela nos dá uma garantia de que não vai sair por cansaço. E, além disso, o Marcelo não precisa do dinheiro. O pai dele é engenheiro, banca as baladas dele, então, o emprego não é essencial.
- Quer dizer que tá escolhendo por condição social? Tipo, dando chance para o mais pobre? Que meigo... – gozou.
- Lógico que não. A questão é que, como a Júlia precisa do dinheiro, ela não vai largar o emprego à toa, entendeu?
- Claro. E além disso, ela tem um par de seios...
- Pára! – interrompeu Perez, rindo – Antes que eu desista da idéia!
- Tá, vamos fazer o quê então? A gente dispensa os dois e depois liga pra ela?
- Não. – respondeu Perez, com cara de desentendido. Levantou-se em seguida e sem cerimônia foi à outra sala, na frente da loja.
- Júlia, - disse, em voz alta – a vaga é sua, começa no dia 2, traga sua carteira de trabalho. Marcelo, fica pra próxima, vamos manter seu currículo e qualquer coisa a gente te liga.
Levemente decepcionado, o rapaz agradeceu Perez e saiu, enquanto Júlia sorria satisfeita. Deu um abraço nos dois novos patrões, apreciado muito por Prado, e saiu.
Prado olhou para Perez com uma expressão enigmática.
- Então é isso sócio. Estamos prontos.

*****

Era o último dia do ano, e o sol começava a se pôr no horizonte. Prado havia saído para buscar Graziela e Perez aguardava a chegada de Ana. Estava feliz e satisfeito, principalmente por sua mãe, que estava no banho, ter saído do hospital. Logo que ela saiu do banheiro, encontrou-se com ele na sala. Perez levantou-se e deu um abraço nela, que mal reagiu. O rapaz estranhou, mas nada quis comentar. A mulher apenas caminhou em silêncio, abriu a porta de vidro que dava para a sacada do apartamento e saiu. Seu filho a seguiu de perto.
- Sabe, - começou a senhora – quando você fez aquele ritual, você não tinha idéia no que estava se metendo, não é?
- Do que... a senhora está falando, mãe? – estranhou Perez.
A velha encostou-se à grade da sacada. Apoiou os dois braços sobre ela e continuou falando.
- Você não faz idéia... do que fez... – divagou.
- Mãe, não sei...? – insistiu Perez, ficando próximo da mãe, mas ainda sem entender como ela podia saber do ritual.
- Você ainda não entendeu, não é? Você vai perder tudo que ama. Tudo e todos.
- Não diga isso, mãe... – os olhos do rapaz estavam marejados – o que eu fiz foi...
- O que você fez foi idiotice. Porque você é um idiota. Igual ao seu pai.
A cara do rapaz era puro pânico e desespero.
- Por que está dizendo essas coisas, mãe...? O que a senhora tem?
- Perez, – começou a senhora, com voz lenta – eu não sou sua mãe. Sua mãe nunca saiu do coma. – sorriu, diabolicamente – E nunca vai sair. Diga “adeus mamãe”. – terminou a velha senhora, saltando da varanda do oitavo andar do prédio.
Perez avançou, tentou segurá-la, mas era tarde demais. Tudo que viu foi o corpo de sua mãe chocar-se contra o asfalto metros abaixo, e o início de gritaria e pandemônio na rua. As lágrimas ofuscaram sua visão, não podia ver, nem tão pouco, se orientar. Cambaleou até a porta de vidro da sala, mal podendo ficar em pé. O nó em seu estômago era um novelo enorme de lã, embaraçado. Nada mais fazia sentido ou tinha razão. Sua mãe estava morta.
Episódio 8 – Feliz Ano Novo, Perez!