quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Episódio 9 - A Primeira Noite de um Novo Homem

O enterro da mãe de Perez fora numa tarde calma. Ventava um pouco e o sol escondia-se por entre as nuvens. Ana esteve ao seu lado o tempo todo, enquanto ele recebia as condolências dos amigos e conhecidos da falecida mãe. Prado ficara junto de Graziela, acompanhando de longe. Evitou cair no lugar comum e repetir clichês ditos nesses momentos delicados. Conhecia Perez há pouco tempo, mas era esperto, sacava rápido as pessoas e sabia que tudo que o sócio desejava era permanecer sozinho com sua perda. Por isso mesmo, nem se despediu quando o enterro acabou. Apenas entrou no carro junto com Grazi e foi para seu apartamento. Afinal, no dia seguinte o seu novo empreendimento finalmente entraria em vigor. Sabia que talvez não pudesse contar com Perez. Ele já havia sumido na noite anterior, durante a virada do ano, logo depois de sua mãe ter sido levada para o necrotério. Claro que a morte da velha senhora havia estragado os planos festivos de todos eles, mas não podia reclamar. Sabia o quanto o sócio era apegado à mãe e o quanto isso podia influenciar também nos negócios. O jeito seria tocar sozinho até que ele decidisse aparecer.

*****

Para espanto de Prado, logo no dia 2, o dia da reinauguração da loja, agora melhorada, lá estava Perez. Um pouco sisudo, é verdade, mas esse era mesmo o seu normal. Agia como se a morte da mãe tivesse ocorrido há tempos ou, talvez, nem tivesse ocorrido. Prado fingiu não se importar e começaram a trabalhar. Júlia, a funcionária nova, já havia chegado e Rogério estava dando-lhe alguns toques sobre a loja. A garota acompanhava atentamente e Prado ficou observando-a por uns momentos. Mais especificamente seus seios.
- Olha o assédio... - brincou Perez, passando por ele e dirigindo-se ao fundo da loja, para que pudesse subir à oficina.
- ...Ow... - retrucou Prado - Que é isso, só tô prestando atenção nas instruções do Rogério, pra ver se ele explica tudo certinho... - riu.
Enfim, Perez parecia ter se recuperado bem e rápido da morte da mãe. O que para Prado era ótimo, pois, podia entender de gerência e contas bancárias, mas não sabia muita coisa de informática. Sendo assim, ficou feliz que o sócio voltasse aos trilhos para que o novo negócio fosse bem.
Com esses pensamentos passando pela cabeça, aproximou-se de Júlia e Rogério, que aguardavam os primeiros clientes.
- E aí, Júlia, Rogério, tudo bem? - perguntou Prado, tentando se enturmar.
- Tudo bem. - responderam os dois, quase em coro.
Prado notou que ambos ficavam um pouco constrangidos na sua presença, principalmente a garota, talvez por se tratar do primeiro dia de trabalho dela. E como ainda não eram nem nove horas da manhã, Prado achou melhor deixar os dois se acostumarem um com o outro e ela com o novo emprego e voltar mais tarde, depois de cuidar de alguns assuntos, que incluía uma nova vaga de emprego, a de gerente do bar onde Graziela trabalhava. Não era bem o que ele estava procurando, mas seria melhor do que continuar desempregado.

*****

A entrevista de emprego fora melhor do que Prado esperava. O salário era ridículo se comparado com seu salário anterior, mas o dono do bar e amigo de Graziela ficara tão interessado que talvez logo ele pudesse propor umas mudanças e melhorias. Quem sabe uma sociedade?
Sonhando alto, Prado parou em frente à sua loja. Estava na hora do almoço. Passou pela porta de vidro e a cara de tédio dos funcionários não era nada animadora.
- Dia devagar? - perguntou.
- É, primeiro dia é meio assim mesmo, até os clientes saberem que já voltamos à ativa. - respondeu Rogério.
- Bom, tá na hora do almoço, quem tá com fome? - os dois ficaram um tanto quanto constrangidos em responder, mas Prado continuou - Vamos lá, eu pago o almoço.
- Bom, vai você então Júlia, depois eu vou... - disse Rogério, sendo gentil.
- Não, o que é isso, vamos todo mundo.
- Mas a loja não fecha no almoço. - retrucou.
- Eu sei. O Perez tá aí?
- Tá lá no fundo.
- Então espera.
Passou pelo balcão, atravessou a lan house por entre os computadores desertos e subiu pela escada. Antes de chegar ao topo, ouviu Perez ao celular: "Tá ótimo, essa noite. No Fashion Frame. Mas você tem certeza mesmo? Então tá, depois das 11... até". Prado sabia que era deselegante ouvir a conversa alheia, mas o tom sério e de preocupação de Perez era muito suspeito. O que poderia ele estar marcando no Fashion Frame para essa noite?
Terminou a subida e achou melhor anunciar sua presença:
- Perez, tá ocupado? - disse, pondo a cara na oficina, onde antes ficava a cozinha do seu sócio.
Ainda com o celular na mão, Perez balançou negativamente a cabeça.
- O que foi? - quis saber, guardando o celular e procurando disfarçar que falava ainda há pouco.
- Vou levar os dois pra almoçar, você não quer ficar lá no balcão não?
Perez olhou para Prado com um meio sorriso: "Tá bom, 'chefe'", brincou.
- É isso aí, - prosseguiu Prado - e vê se faz direitinho senão desconto do seu salário no fim do mês. - terminou, com uma piscadela e apontando o dedo como uma arma para Perez.

*****

Prado estava acostumado a comer em restaurantes caros, mas já que a grana começava a ficar curta, levou seus dois funcionários num restaurante mediano mesmo. E conforme foram comendo, a conversa foi fluindo com mais facilidade e todos foram ficando mais à vontade. Era exatamente o que Prado planejava, pois sabia que um bom relacionamento com os funcionários era um dos principais responsáveis pelo sucesso de qualquer pessoa. Além disso, Júlia tinha um corpo bonito e seios maravilhosos. Não que estivesse pensando nisso, mas... bom, era uma possibilidade.
- Mas eu achei legal o nome da lan: Perez & Prado. - disse Júlia, interrompendo os pensamentos lascivos de Prado.
- Hum. E por que achou legal? - quis saber Prado.
- Ora, por causa do Perez Prado! - animou-se a jovem.
- Perez Prado...?
- Ah, não acredito! - indignou-se ela - Você não conhece Perez Prado?
- Não. Você conhece Rogério?
- Também não...
- Ah, Perez Prado, o "rei do mambo"! Nunca ouviram Caballo Negro, Tequila ou La Pantera Mambo?
Ambos, Prado e Rogério, continuaram com cara de "ué".
- É bom? - arriscou-se Prado.
- Nossa, é muito bom. Vocês têm de conhecer o "Noites Cubanas", a melhor casa de salsa, merengue e mambo que eu já fui.
- E pelo jeito você adora. - suspeitou Prado.
- Sim, eu gosto muito. Vocês deviam conhecer. Vale muito a pena.
- É, fiquei interessado... e aí, Rogério, você topa?
- Ah, pode ser. Parece bom. Podemos chamar o Perez também.
Nesse momento Prado lembrou-se da estranha conversa de Perez mais cedo ao celular. Achou melhor investigar. Terminaram o almoço e voltaram para a loja. Prado passou o restante do dia praticamente o tempo todo ao lado de Perez, procurando descobrir alguma informação sobre a tal Fashion Frame. Prado sabia que se tratava de uma boate, mas não conseguia imaginar o que Perez poderia procurar por lá. Será que seu sócio estava atrás de drogas? Estaria ele lidando com a morte da mãe por meio de substâncias alucinógenas e ilícitas? Como descobrir? Bom, só tinha um jeito, ir pessoalmente à tal boate.

*****

Quando a noite alta chegou, Prado foi para a tal boate. Nunca tinha ido até lá, o lugar não tinha muita fama. Parou o carro do outro lado da rua e ficou de campana. Frente à boate, dois seguranças recebiam os clientes. Havia uma única porta, grande, mas apenas com um dos lados abertos. O letreiro em neon acima da porta tinha letras grandes e coloridas e podia-se ler Fashion Frame, estilizado.
Não muito depois das onze horas, finalmente Prado percebeu Perez chegando junto com Miguel. A coisa começava a ficar ainda mais suspeita. Desceu do carro assim que eles entraram e foi para a entrada, não podia correr o risco de perdê-lo no meio da multidão que poderia haver lá dentro. Mas assim que passou pela porta e pelos seguranças, deu de cara com Perez e Miguel, junto a um balcão, onde uma das atendentes pegava o nome de cada um para entregar a comanda de consumo.
- O que você tá fazendo aqui? - perguntou Perez, espantado.
- Eu... hã... ah, saí pra dar uma volta, a Graziela tá trabalhando então eu vim sozinho... - mentiu Prado.
- Mas aqui?
- É, qual o problema? E você, também saiu pra dar uma espairecida?
- Não... - respondeu, com uma cara de rejeição - Vim resolver um assunto.
- Ah, legal. A gente pode aproveitar pra curtir então, já que estamos aqui...
- Não... - repetiu-se Perez, ainda com cara de contrariado.
Enfim, entraram. A boate não estava muito cheia, mas também não estava vazia. Ao lado direito havia um grande balcão com moças e rapazes servindo aos clientes. Bebidas com cores vivas e brilhantes, como verde limão e pink, pareciam ser as preferidas. À frente, mais para a esquerda, dezenas de pessoas se movimentavam na pista de dança. Luzes piscavam na parte de cima e podia se perceber um andar superior rodeando todo o salão onde, possivelmente, eram os camarotes. Ao lado da pista de dança, mais à esquerda, numa espécie de tubo enorme, uma garota seminua dançava ao sabor da música. Na mesma estrutura, mas no "segundo andar", era um jovem de corpo musculoso e roupa colada que se remexia ao ritmo da música eletrônica.
- Pô, até que é legal... - disse Prado, mas só depois percebeu que estava sozinho, seus dois "companheiros" já tinham se achegado junto ao balcão. Aproximou-se e tentou ouvir o que Prado e Miguel conversavam com um dos barman, mas para isso, teve de enfiar-se num pequeno espaço, empurrando com as costas o rapaz que o separava do seu sócio. Tentou prestar atenção, mas foi interrompido com um respirar pesado no seu pescoço, logo abaixo da orelha:
- Calma gato, não precisa empurrar...
A voz era rouca e grossa, embora o dono forçasse o máximo para afiná-la. Sabia que não era de uma mulher. Olhou para trás e o rapaz tinha um olhar malicioso.
- Hã... foi mal, desculpa...
- Não tem problema. Meu nome é Michael, e o seu?
- Eu me chamo Prado... Pedro Prado...
- Hum, e você é novo aqui, não? Nunca te vi e conheço a maioria das pessoas que vem aqui.
- É, não, é que, hã, eu só tô de companhia com ele... - apontou para Perez, que nem lhe dava atenção.
- Hum, que pena...
- Não... - riu nervosamente - nós somos sócios, é só negócios...
- Sei... - riu o rapaz, ainda mais malicioso.
- Tá, dá licença tá.
- Tem toda, gato.
Perez foi para o outro lado, e entrou logo à frente de Perez, empurrando um pouco Miguel.
- Cara, o que você veio fazer aqui, fala a verdade? Tem um cara me cantando aqui atrás, o que é isso?
- Claro que tem um cara te cantando, você esperava o quê, uma mulher? - respondeu Perez, impaciente, enquanto esperava pela volta do barman.
- Ué... lógico! E você, não?
- Então por que você veio numa balada gay?
Prado ficou sem reação por um momento. A Fashion Frame... era uma balada gay? Bom, fazia sentido. Mas isso quer dizer que Perez... óh, coitada da Ana quando descobrisse.
- Eu sei o que tá pensando... - disse Perez - e não é nada disso, eu vim aqui resolver uma coisa. E você? - perguntou, desconfiado.
- Tá, eu admito... eu tava te seguindo.
- Você tá ficando louco?
- Foi mal, mas eu pensei que você podia, sei lá... - não terminou, pois Miguel chamou por Perez.
- Vem, já sei em qual camarote ela tá. É lá em cima, onde fica o dinheiro.
- Prado, fica aqui e vê se não arruma nenhuma confusão. Não vai ter ataque de homofobia senão você morre aqui.
- Ataque de homofobia? - indignou-se - Se liga, não faço discriminação por alguém ser gay! - gritou enquanto Perez se afastava, guiado por Miguel. Ao seu lado, alguns rapazes olharam, com cara animada. Prado percebeu, tentou disfarçar e achou melhor apenas apontar para Perez e dizer "Eu tô com ele, tô com ele...".

*****

Já tinha quase meia-hora que Perez e Miguel haviam desaparecido. Prado estava no segundo drinque, achou melhor ir devagar, pois tinha de dirigir e não podia correr o risco de ficar simpático demais, não aqui, afinal, alguém podia interpretar errado sua simpatia. Se bem que, podia não ser de todo ruim... por exemplo, havia duas garotas numa mesa próxima que eram realmente bonitas. Uma loira de cabelos curtinhos, cheinha, mas não gorda, apenas não magra como essas modelos esqueléticas que se vê por aí e a outra, morena de cabelos cacheados, também um pouco mais cheinha do que as magrelas que Prado estava acostumado. Mas eram bonitas. Quem sabe não rolava alguma coisa entre os três? Humm... afinal, qual homem já não sonhara em pegar duas mulheres de uma vez? Hahahaha! Se esforçou para não cair na gargalhada, no momento em que as duas o notaram. Conseguiu se conter e deu um sorriso, levantando apenas uma das sobrancelhas. A resposta das duas foi um beijo molhado, que faria Prado corar, se não o deixasse tão excitado.
- Eu consigo ler sua mente... - alguém sussurrou ao seu lado, assustando-o. Virou-se e encontrou uma moça morena, não devia ter mais de trinta anos. Tinha os cabelos longos e lisos, seus olhos tinham uma luz que quase os fazia brilhar, ainda que fossem pretos. Vestia um bustiê trabalhado com alguns detalhes em vermelho e uma calça jeans com a cintura mais baixa que ele havia visto até agora. Ficou sem fala por um momento, apenas observando a linda jovem, sua cintura esguia e fina se alargava no quadril e a calça colada deixava isso ainda mais evidente.
- Ainda consigo ler sua mente... - provocou.
- Se pudesse ler a minha mente, você me daria um tapa... - brincou Prado - Ou me levaria pra um lugar mais reservado... - concluiu, reclinando-se e aproximando seu rosto do da garota.
- Hummm... Quer dançar? - convidou, colocando a mão no peito de Prado.
- Ei, espera... - respondeu, caindo em si - Acho que não vai rolar, eu só vim resolver um assunto com um amigo, não leve a mal, mas eu sou hetero e tal... você é mulher mesmo?
Ela riu. Uma gargalhada gostosa e zombeteira.
- Claro que sou mulher, gato. Posso te mostrar depois da dança, se quiser... - continuou provocando, puxando o pelo braço para a pista.
Prado sorriu.
- Nesse caso, acho que uma dança não vai fazer mal nenhum...
Foram para a pista, a garota dançava envolvida pela música. A batida eletrônica havia sido substituída por Into the Night, de Santana e Chad Kroeger. E Prado achou muito apropriado, afinal, a jovem parecia mesmo ter fogo em sua alma. Ele tentava acompanhar seu ritmo, mas ela era pura excitação. Ele não conseguia tirar os olhos dos seus seios, de sua cintura e de seu enorme, mas bem definido, traseiro. A calça era tão baixa que cada vez que ela virava de costas, ele quase conseguia ver o início de suas nádegas. E ela continuava provocando, colocava os braços sobre seu ombro, um de cada lado, fazia menção de beijá-lo e então, se virava de novo, esfregando seu corpo no dele.
De repente, o barulho de um tiro pôs todos em alerta. Seria mesmo o disparo de uma arma de fogo? Antes que alguém tivesse alguma reação, houve outro tiro, dessa vez estilhaçando um vidro de um dos camarotes no andar superior. E foi suficiente para que o salão virasse um pandemônio e as pessoas procurassem a saída, se empurrando e se atropelando. Prado ainda estava sem reação, preocupado com Perez. Notou que a garota também não se moveu logo. Depois fez uma cara de insatisfeita e foi em direção à escada de ferro que levava ao segundo andar.
- Espera! Onde você vai? - interpelou Prado, segurando-a pelo braço.
- Resolver um problema. - disse a garota, sem nem prestar atenção nele e desvencilhando-se dele.
Em seguida, ela subiu as escadas e Prado decidiu segui-la. No andar de cima, ao lado do espaço onde ficava o DJ, pôde ver Prado e Miguel. O segundo tinha uma arma, e dois seguranças estavam rendidos no chão. O vidro da sala do DJ havia sido estilhaçado com o tiro.
- Muito bem, venha para cá, bem devagar! - griou Miguel, apontando a arma para a moça. Prado estava bem atrás dela.
- O que vocês querem? Dinheiro? Está no cofre. É só pegar e ir embora. - gritou, sem se mover, a jovem.
- Não queremos o seu dinheiro, você sabe disso. - retrucou Perez.
A moça se aproximou. Estava há cerca de dois passos de Miguel, que mantinha a arma apontada. Perez tentava se aproximar, tinha uma pequena faca, um canivete parecia. Mas Prado não conseguia prestar atenção. A cena toda era surreal demais. Queria correr dali, mas tinha medo de levar um tiro do maluco com a arma.
- Cara, você tá ficando louco? - conseguiu dizer enfim, virando-se para Perez, que se aproximava com o canivete. Achou que ia extripar a moça.
- Prado, sai daqui, agora! - gritou Perez.
O momento de distração foi o suficiente para que, num movimento rápido e inesperado, a garota partisse para cima de Miguel, desviando sua mão do alvo e, com um golpe que parecia não conter força, jogá-lo contra a parede. Miguel bateu com as costas e caiu, derrubando a arma, e foi a vez da garota acertar um tapa com as costas da mão em Perez, que foi cair quase dentro da sala de som do DJ. Prado observava atônito, sem entender, espantado com a força da mulher. Ela apanhou a arma no chão, ignorou Miguel, ainda caído, mas tentando se levantar e foi até Perez, do outro lado. Agarrou-o pelo pescoço e levantou-o sobre sua cabeça, com apenas uma das mãos.
- Últimas palavras? - perguntou.
Perez não respondeu. Ao invés disso, deu uma cusparada de sangue na mulher, que gritou e deixou que ele escapasse de sua mão. O sangue parecia conter ácido, pois os gritos dela davam a impressão de que estava sentindo uma dor lancinante. Perez mal caiu no chão e já se levantou num pulo, agarrando a mulher que berrava. Esfregou-se no sangue no rosto dela e, de repente, a dor pareceu transferir-se para ele. Em poucos instantes a jovem estava desfalecida no chão e Perez arfava ao seu lado, como se começasse a se recuperar. Por um momento, Prado podia jurar que o sócio rosnava.
De repente, despertou do trase em que se encontrava com Miguel ajudando Perez a se levantar.
- Rápido, a polícia não vai demorar, temos de ir embora agora! - Prado não se mexeu - Vamos! - gritou e, só então, Prado voltou a si. Ajudou Miguel a carregar Perez, que parecia sem forças. Chegaram ao carro, Miguel apenas agradeceu e partiu. Prado ficou ali, sozinho, sem entender. Finalmente correu para o seu carro, entrou, deu a partida e acelerou o máximo que pôde, sem saber direito qual seu destino. Tudo que sabia é que Perez tinha muita coisa para explicar.

terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Já fazia dias que Prado vira seu sócio e companheiro de apartamento chegar com as mãos banhadas em sangue, num estado que parecia de choque. No entanto, não ousara perguntar o que havia acontecido. Ao invés disso, no dia seguinte, apenas fingira que não havia nada de errado e continuaram com a reconstrução da loja de informática. Perez falava pouco. Na verdade, agia de forma estranha, por vezes misteriosa, principalmente quando falava com o tal amigo Miguel. Isso irritava um pouco Prado, fazia-o sentir-se excluído, mas não tinha intimidade suficiente com o parceiro para qualquer tipo de cobrança pessoal. Mas, depois de três dias de quase total silêncio, tentou puxar algum assunto mais animado.
- E aí, tá chegando o Natal... Já tem planos? – perguntou, enquanto almoçavam num restaurante próximo à loja.
Sem se alterar, Perez apenas desviou os olhos para ele por um momento, terminou de engolir a comida que estava mastigando e respondeu, sem emoção.
- Não gosto muito do Natal. Talvez eu durma... – continuou comendo.
Prado ficou espantado, mas não demonstrou. Continuou comendo. Terminaram a refeição e o dia passou como uma tortura para ele. O clima depressivo de Perez era como um odor desagradável que infestava o ambiente e o incomodava por demais. Sabia que a mãe do rapaz estava em coma, mas, puxa, a vida continuava! Viver como um miserável não mudaria o estado da mãe, não iria fazê-la sair do coma. Mas tudo bem, não seria ele que iria dizer isso. Mas, por via das dúvidas, sairia à noite para relaxar um pouco. Graziela estaria de serviço hoje e seria uma boa passar umas horas em sua companhia, mesmo sabendo que ela mal teria tempo para conversar. Mas era bom vê-la em seu uniforme de bargirl. Isso o fazia lembrar-se dos tempos em que o dinheiro entrava como água e alguns funcionários o idolatravam. Ah, o poder... realmente fazia falta às vezes.

*****
A noite de Prado fora ótima. Principalmente porque metade das bebidas que tomava era por conta da casa, afinal, ele namorava a bargirl preferida do lugar. Pensar na palavra “namoro” o fizera estremecer por um momento, mas já era muito tarde, estava cansado e com sono. Graziela o havia deixado em seu prédio há poucos minutos. No dia seguinte ligaria para saber se o carro já ficara pronto. Também ligaria para o gerente do banco para perguntar a respeito da vaga, pois já esperara demais.
Entrou no apartamento tentando não fazer muito barulho, afinal, não queria incomodar seu hóspede e sócio. Fechou a porta devagar, passou pela cozinha à direita, logo depois da sala e apenas pegou uma garrafa de água mineral na geladeira. Saiu e seguiu em frente pelo corredor, entrou no quarto, tirou os sapatos e despiu-se quase por completo, ficando apenas de cueca. Foi até a suíte, lavou o rosto, escovou os dentes e passou seu creme para as mãos. Voltou para o quarto, tomou um gole de água e, depois de deixar a garrafa descansando no criado mudo ao lado da cama, deitou-se e não demorou a pegar no sono. Porém, sua soneca não durou muito tempo. Logo foi acordado pelo barulho do celular de Perez e pôde perceber que o rapaz estava se movimentando pelo quarto. Não demorou muito e ouviu o barulho das chaves na sala e soube que ele tinha saído. Voltou a dormir.

*****

Prado acordou novamente, com um barulho de alguém mexendo no apartamento, pelos ruídos, achou que fosse na cozinha. Levantou-se cautelosamente. Abriu a porta devagar, armado apenas dos punhos. Não poderia ser Perez, ouviu quando ele saíra de manhãzinha. Que horas devia ser? Não fazia idéia, mas o sol já invadia a sala pelas frestas da cortina da varanda. Enfim, chegou até à porta da cozinha, olhou com cuidado, e tomou um susto. Não por encontrar um invasor, nada disso, afinal, era apenas seu sócio preparando o café. O susto ficou por conta da mesa cheia de guloseimas, sucos e frutas preparada para o café da manhã. Perez virou-se para Prado assim que o notou.
- Ah, bom dia! Eu preparei um café da manhã, se não se importa...
- Não, não... tudo bem... – respondeu Prado, espantado e desconfiado da atitude do rapaz.
- E se não tiver problema, eu trouxe uma pessoa pra tomar café e queria que você conhecesse. Está na sala.
Prado não disse uma palavra. Apenas recuou alguns passos e olhou para a sala. Quem seria a misteriosa visita que fizera uma mudança tão drástica no humor de Perez? Seria o tal Miguel, seu amigo/namorado ou sei lá o que? Logo que se aproximou do fim do corredor e pôde ver o sofá, soltou um suspiro de alívio. Os cabelos grisalhos e a pele enrugada deixava óbvio que não era nada do que estava pensando. Como pôde ser tão idiota? Era lógico que a pessoa, a única que poderia , talvez, causar tamanha transformação em Perez, era sua mãe.
- Oi, bom dia... – disse Prado, hesitante.
- Óh, bom dia! – disse a velha senhora, se levantando – Você deve ser Prado, sócio do Perez... – concluiu, enrubescendo um pouco.
- Sim, sou eu. Então a senhora melhorou? Que bom! – respondeu Prado, sorrindo e procurando a razão da velha ficar com o rosto corado. Então percebeu que estava só de cueca e, provavelmente, isso estava constrangendo a pobre senhora – Me dá licença que vou colocar uma roupa, fique à vontade.
Correu de volta para o quarto e tratou de vestir uma camisa e uma bermuda. Depois de trajar-se adequadamente, voltou à sala, mas mal começou a conversa com a mãe de Perez, foi interrompido pelo mesmo.
- Prado, eu vou levar minha mãe até o Retiro. Mas de tarde a gente se encontra na lan house. Precisamos contratar alguém, temos algumas entrevistas marcadas para hoje, lembra?
- Ah sim, claro... – divagou Prado – A gente se vê depois, então.
Despediram-se e tão logo Perez e a mãe saíram do apartamento, Prado aproveitou para ir à cozinha e atacar os quitutes que o rapaz havia preparado.

*****

Horas depois, ambos se encontraram em frente à reformada loja de Perez, agora transformada também em lan house. O esquema da loja continuaria basicamente o mesmo, mas ao invés de manter a oficina nos fundos, ela seria transferida para o andar superior, dando lugar assim para os vinte computadores ligados em rede.
Prado, que havia acabado de recuperar seu carro, devidamente consertado, tateava entre algumas chaves procurando a certa para abrir a porta de metal da entrada. Um pouco impaciente, Perez tomou-lhe o molho das mãos e encaixou a chave na fechadura, girando no sentido anti-horário e destravando a porta. Começou a levantá-la e, assim que Prado apoiou-se por baixo para ajudá-o, ele tentou quebrar o gelo.
- Então... planos para o Natal? – perguntou Perez, não muito animado.
- Hum... nada ainda... – respondeu Prado, ainda mais sem ânimo.
- E sua família?
- Meus pais moram longe. E, no momento, não posso me dar ao luxo de viagem de férias...
- Certo. Tava pensando numa pequena ceia no seu apartamento, o que acha? Só a gente.
- Só a gente...? Tipo, só nós dois, como um...
Perez interrompeu-o.
- Não, só a gente próxima eu quis dizer. Eu, você, minha mãe, sua namorada, a Ana...
- Quem é Ana?
- É uma das enfermeiras que cuidam da minha mãe.
- Sei... e seu amigo, como ele chama mesmo?
- Miguel.
- É, e o Miguel, não vai convidá-lo?
- Não.
- Vocês... hã... brigaram? Ou algo assim?
- Não, mas ele não é tão meu amigo assim.
- Certo. Legal. Acho uma boa idéia.
A essa altura, a porta já estava aberta. Então os dois concordaram com um aceno de cabeça e entraram, pois logo os candidatos à vaga estariam chegando.

*****

Horas e vários candidatos depois, Perez e Prado já haviam entrevistado algumas pessoas. Rogério recepcionava-os na parte da frente da loja e, um a um, os mandava para a entrevista, na parte dos fundos, onde agora era a lan house. Depois da entrevista, o candidato voltava para a parte da frente, onde ficava aguardando por algum veredicto. Havia bons candidatos, mas o mais difícil era que os dois tivessem opiniões de acordo. Enfim, no crepúsculo, concordaram, pelo menos, em chegar a uma conclusão.
- Pra mim parece óbvio que devemos contratar a Júlia. – começou Prado.
- Não, vamos contratar o Marcelo. – discordou Perez.
- O quê? Por quê? A Júlia é perfeita! Ela é formada em informática, tem curso de hardware e tá no primeiro ano de sistemas de informação. Qual o problema?
- O problema é que não é por isso que você quer contratá-la. Você a escolheu por causa dos olhos azuis, dos cabelos cacheados e dos peitos grandes e empinados.
- Qual é...? Eu nem reparei nisso...!
- Claro. Vamos contratar o rapaz. Não quero correr o risco de você se envolver com uma funcionária. Depois ela nos processa e aí estamos ferrados. Eu vi “Assédio Sexual” e, acredite, você não é o Michael Douglas.
- Que papo mais estapafúrdio é esse? Ela é boa! Quero dizer, tem boas qualificações! Além do mais, o cara também pode nos processar por assédio.
- Por quê? – espantou-se Perez, olhando de relance para Prado, voltando a examinar as fichas dos candidatos logo em seguida – Você é bissexual?
- Não! ...Mas e se você for?
- Muito engraçado. Vamos contratar o Marcelo.
Prado respirou por um momento. Isso não estava dando certo. Tudo bem que os dotes físicos da garota o haviam deixado de queixo caído, mas isso não quer dizer que ela não era competente.
- Você está sendo preconceituoso... – voltou a argumentar.
- E você, safado. – retrucou Perez.
- Tá, vamos dar uma chance. Um teste, sei lá, alguma coisa assim, na semana que vem, depois do Natal, o que acha?
Perez suspirou.
- Tá legal. Afinal, as qualificações dela são mesmo boas. Vamos pedir para que eles retornem na semana que vem e a gente faz um teste.
Prado sorriu.
- Assim é que se fala, “chefe”. – zombou, terminando com um tapinha nas costas.

*****

Era véspera de Natal. Perez mal podia esperar para buscar sua mãe no Retiro. Ainda mais porque Ana havia aceitado seu convite para a ceia. Talvez ele conseguisse um pouco de felicidade enfim. Nada de demônios, nada de maldições ou histórias loucas para bagunçar sua vida. Só um pouco de felicidade com a família e os amigos. Amigos. Engraçado. Nunca tinha tido amigos muito próximos e, de repente, Prado começava a tornar-se mais do que apenas um sócio comercial, apesar das diferenças todas entre eles. Pelo menos o rapaz era engraçado, divertido e otimista. E talvez ele precisasse mesmo de um pouco disso em sua vida.
Nesse momento, Prado chegou, mal esboçou um “fala aí” e foi para o banheiro. Perez aproximou-se da mesa da sala de jantar, que ficava na outra extremidade da sala e observou algumas cartas que seu companheiro deixara sobre a mesa.
- Então... tá tudo bem? – gritou, para que Prado o ouvisse do banheiro.
- Tudo bem nada. Passei no banco que fiz a entrevista. O emprego “miou”. O gerente acabou dando pra trás e contratando uma burra peituda qualquer...
- Ah... por que será que isso me soa como justiça irônica?
- Muito engraçado. – disse Prado, aparentemente com a calma recuperada e saindo do banheiro.
Quando chegou à sala, encontrou Perez fuçando em sua correspondência, com um sorriso largo aberto na cara.
- Que foi? – perguntou.
- Seu nome... é Pedro Prado? – disse Perez, quase não se contendo.
- Sim, por quê?
- Hahaha! Isso é hilário...!!
- E posso saber por quê? Quem sabe eu consiga dar algumas risadas também?
- Sabia que quando a Marvel começou a publicar quadrinhos no Brasil, o nome do Homem-Aranha foi traduzido de Peter Parker para Pedro Prado?
- Tá, e daí? Grande coincidência.
- E daí que Pedro Prado é um baita trava-língua! Tenta dizer três vezes: o pé do Pedro Prado é preto! Hahaha!
- Ah tá... e... e... o seu nome que é Daniel Perez?
- E daí, qual o problema?
- O problema é que você é praticamente a versão masculina daquela atriz que foi assassinada pelo cara do elenco da mesma novela, a Daniela Perez! É bem pior, tá vendo?
- Cara, você é louco... Bom, vou buscar minha mãe, quer ir junto?
- Não, vou tomar um banho.
Nesse momento, o celular de Perez tocou. O rapaz pegou o aparelho na mão, conferiu a ligação, mas não o atendeu. No entanto, fez uma expressão de insatisfação.
- Que foi, alguma coisa errada? – preocupou-se Prado.
- Não, não é nada. É só o Miguel. Depois eu falo com ele... quando estiver afim... – dizendo isso, apanhou as chaves do carro e partiu.

*****

Já passava das dez da noite quando Graziela finalmente tirou o peru do forno e puderam começar a refeição. Todos estavam bastante empolgados e falantes, apesar da pouca intimidade entre eles. Tão logo deu meia-noite, a mãe de Perez, alegando estar muito cansada, pediu pra se retirar. Perez se prontificou em deixá-la à vontade e dormir no quarto em que ele ocupava. Depois disso, perguntou a Prado se poderia hospedar a mãe nesses dias de festa, até o ano novo, pelo menos.
- Claro, tudo bem. Só que você é quem vai ter de dormir no sofá... – brincou.
Como Graziela e Prado haviam preparado quase toda a ceia, Perez e Ana se ofereceram para lavar a louça. Nada mais justo, foram os dois para a cozinha.
- Então, já tem planos para o ano novo? – perguntou Perez, com um brilho infantil nos olhos.
Ana sorriu, quase que timidamente.
- Estou... hã... estudando as opções.
- Hum... e passar a virada junto com a gente é uma boa opção?
- Depende...
- Do quê?
- Junto com “a gente”? Ou junto com “você”?
Perez ignorou então que suas mãos estavam até o pulso de espuma e detergente e beijou Ana, que retribuiu apaixonadamente. Poucos minutos depois, estavam com as roupas parcialmente molhadas e respiração ofegante.
- Sabe... sua mãe vai ficar no seu quarto... é natal...
- Sim...?
- ...Meu apartamento não é longe daqui... se quiser conhecê-lo...
Perez sorriu. Em seguida, passaram apressadamente pela sala.
- A gente vai dar uma saída, Prado. E deixa que de manhã eu lavo a louça, prometo. Qualquer problema, liga no meu celular. Tchau pra vocês.
O casal que estava na sala apenas sorriu e se despediu. Em seguida, foi Prado que reiniciou a conversa.
- Então, Grazi, meu amor... parece que estamos enfim sós...
- Ah tá... isso se você desconsiderar a doce velhinha dormindo no outro quarto.
- É, tem isso. – fez uma pausa, depois recomeçou – Sabe Grazi, nunca fui muito de rotinas, mas por mais que minha vida fosse movimentada, sempre tive certo controle sobre as coisas. Sobre meu emprego, meu salário, sobre o que é meu. E agora estou um pouco ainda assustado com tudo que está acontecendo, tipo, não tenho um emprego, estou investindo praticamente todo meu capital numa loja que pode dar prejuízo... – fez outra reflexão, só depois de alguns segundos continuando – Então, apesar de tudo isso, eu estou gostando dos desafios e do que está acontecendo. Estou gostando de “não saber” o que vai acontecer. É excitante, sabe? E... como eu vou dizer isso... hã... você me conhece há um bom tempo e sabe que eu nunca fui de me envolver muito, mas, tudo muda. E dentre todas essas mudanças que te falei, acho que, a melhor na minha vida, foi estar com você. Quero dizer, sei lá, estou gostando de estar com você, da sua companhia, da ansiedade pra poder vê-la de novo... acho que estou... como é a palavra... apaixonado?
O rosto de Graziela estava iluminado e o sangue subia-lhe à face, dando às suas bochechas uma coloração avermelhada. No fim, não pôde dizer nada, apenas esboçou um sorriso cúmplice e fez um afago no braço do seu declarante.
- Então, que tal desligarmos a tv, irmos até o quarto... ainda tem bastante daquele óleo de massagem... – sorriu maliciosamente.
- Eu estava me perguntando, - disse ela, enfim – quando é que sua conversa ia terminar na parte em que você me leva pra cama... – riu.
- Pois é. Algumas coisas nunca mudam. – terminou ele, levantando-se e beijando a mão dela, para que o acompanhasse.

*****

No penúltimo dia do ano, a lan house finalmente estava prontinha para ir a funcionamento. Mas ainda faltava contratar um funcionário para juntar-se a Rogério. Sendo assim, por volta das nove da manhã, Perez, Prado, Marcelo e Júlia estavam reunidos para resolverem a questão e colocarem fim ao suspense.
Iniciaram o teste, que durou pouco mais do que quinze minutos, afinal, não era nada muito complexo para quem tinha conhecimento profundo em informática. Marcelo terminou primeiro, poucos minutos antes de Júlia. Os dois sócios deixaram os pretendentes ao cargo na loja e se reuniram na ante-sala ao fundo, agora a lan house.
- E então, Perez, o que você acha...?
- Acho que o Marcelo sabe um pouco mais do que a Júlia.
- É, eu também acho... – concordou Prado, um pouco decepcionado.
- Mas vamos contratar a Júlia.
- O quê? Mas você acabou de dizer que o Marcelo sabe mais... – retrucou Prado, sem entender.
- Sim, mas analisa comigo... a Júlia tá no primeiro ano de faculdade e precisa do emprego pra bancar a faculdade. Logo, ela nos dá uma garantia de que não vai sair por cansaço. E, além disso, o Marcelo não precisa do dinheiro. O pai dele é engenheiro, banca as baladas dele, então, o emprego não é essencial.
- Quer dizer que tá escolhendo por condição social? Tipo, dando chance para o mais pobre? Que meigo... – gozou.
- Lógico que não. A questão é que, como a Júlia precisa do dinheiro, ela não vai largar o emprego à toa, entendeu?
- Claro. E além disso, ela tem um par de seios...
- Pára! – interrompeu Perez, rindo – Antes que eu desista da idéia!
- Tá, vamos fazer o quê então? A gente dispensa os dois e depois liga pra ela?
- Não. – respondeu Perez, com cara de desentendido. Levantou-se em seguida e sem cerimônia foi à outra sala, na frente da loja.
- Júlia, - disse, em voz alta – a vaga é sua, começa no dia 2, traga sua carteira de trabalho. Marcelo, fica pra próxima, vamos manter seu currículo e qualquer coisa a gente te liga.
Levemente decepcionado, o rapaz agradeceu Perez e saiu, enquanto Júlia sorria satisfeita. Deu um abraço nos dois novos patrões, apreciado muito por Prado, e saiu.
Prado olhou para Perez com uma expressão enigmática.
- Então é isso sócio. Estamos prontos.

*****

Era o último dia do ano, e o sol começava a se pôr no horizonte. Prado havia saído para buscar Graziela e Perez aguardava a chegada de Ana. Estava feliz e satisfeito, principalmente por sua mãe, que estava no banho, ter saído do hospital. Logo que ela saiu do banheiro, encontrou-se com ele na sala. Perez levantou-se e deu um abraço nela, que mal reagiu. O rapaz estranhou, mas nada quis comentar. A mulher apenas caminhou em silêncio, abriu a porta de vidro que dava para a sacada do apartamento e saiu. Seu filho a seguiu de perto.
- Sabe, - começou a senhora – quando você fez aquele ritual, você não tinha idéia no que estava se metendo, não é?
- Do que... a senhora está falando, mãe? – estranhou Perez.
A velha encostou-se à grade da sacada. Apoiou os dois braços sobre ela e continuou falando.
- Você não faz idéia... do que fez... – divagou.
- Mãe, não sei...? – insistiu Perez, ficando próximo da mãe, mas ainda sem entender como ela podia saber do ritual.
- Você ainda não entendeu, não é? Você vai perder tudo que ama. Tudo e todos.
- Não diga isso, mãe... – os olhos do rapaz estavam marejados – o que eu fiz foi...
- O que você fez foi idiotice. Porque você é um idiota. Igual ao seu pai.
A cara do rapaz era puro pânico e desespero.
- Por que está dizendo essas coisas, mãe...? O que a senhora tem?
- Perez, – começou a senhora, com voz lenta – eu não sou sua mãe. Sua mãe nunca saiu do coma. – sorriu, diabolicamente – E nunca vai sair. Diga “adeus mamãe”. – terminou a velha senhora, saltando da varanda do oitavo andar do prédio.
Perez avançou, tentou segurá-la, mas era tarde demais. Tudo que viu foi o corpo de sua mãe chocar-se contra o asfalto metros abaixo, e o início de gritaria e pandemônio na rua. As lágrimas ofuscaram sua visão, não podia ver, nem tão pouco, se orientar. Cambaleou até a porta de vidro da sala, mal podendo ficar em pé. O nó em seu estômago era um novelo enorme de lã, embaraçado. Nada mais fazia sentido ou tinha razão. Sua mãe estava morta.
Episódio 8 – Feliz Ano Novo, Perez!

segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

Episódio 7 - Sociedade



Perez segurava a caneta na mão como se o objeto tivesse vida própria e tentasse lutar contra seus dedos. Olhava fixamente para o papel disposto na mesa, como se o mesmo o estivesse encarando. À sua frente, um senhor de meia idade, vestido socialmente e com gravata colorida, olhava-o impaciente. Às suas costas, em pé e com os braços cruzados sob o peito, estava Prado.
- Algum problema, Perez? – perguntou o homem à sua frente.
- Não... – respondeu Perez hesitante – Eu só... ainda não me acostumei com a idéia. – sorriu, meio constrangido, voltando-se para Prado e, em seguida, novamente para a folha.
Enfim, assinou seu nome nele. E nesse momento deixava de ser o único dono da loja de informática que era seu sustento e havia sido destruída no misterioso incêndio. Levantou-se da cadeira, ainda constrangido. Prado estendeu-lhe a mão.
- Então, Perez, nós temos um acordo. Toque aqui... sócio! – brincou.
Saíram do cartório e voltaram para a casa de Perez, que ainda estava quase toda em cinzas. O rapaz estava procurando o que ainda podia ser aproveitado do incêndio. Havia muito pouco. E o pior de tudo, ele estava sem moradia. Tinha de reconstruir o quanto antes o seu negócio, mas o dinheiro guardado que tinha era muito pouco para se manter por muito tempo.
- Hã... Prado... – disse Perez, quebrando o silêncio enquanto dirigia – Desculpa o jeito que te tratei quando veio me falar da sociedade... no fim, queimei a língua...
- Não esquenta, cara. – respondeu Prado – Todo mundo faz besteira às vezes. Mas agora relaxa. O importante é botarmos a loja pra funcionar logo. Ainda mais agora que vamos expandir e transformar em lan house. O dinheiro que eu recebi do banco vai dar pra reconstruir tudo, fica tranqüilo.
- É, ainda bem que você tem dinheiro. Eu tô até sem casa... não quero mais ficar no hotel que passei as últimas noites, preciso alugar uma casa, sei lá...
- Ah, você pode ficar comigo, no meu apartamento, se quiser.
- Ficar... com você...?
- É. Algum problema?
- Não, mas não quero criar problema pra você...
- Criar problema por quê? Você é gay?
- Não, claro que não...
- Ah, então não vai ter problema. – disse Prado, com um sorriso malicioso no rosto.
Chegaram ao que restara da casa de Perez. Olhar para os destroços ainda enchia seus olhos de lágrimas. Prado notou, mas não demonstrou. Ao invés disso, foi adentrando em meio a objetos queimados, vendo se havia algo que valia a pena ser salvo.
Passaram o resto da manhã assim. Já passava do meio-dia quando Prado quis fazer uma pausa para almoçar. Perez recusou o convite, disse que tinha um assunto a resolver. Prado ficou tentando a perguntar o que era, mas se deteve. Então um carro de vidros escuros e placas federais encostou no meio-fio e um rapaz loiro com quase trinta anos desceu do veículo.
- Prado, esse é o Miguel, um... amigo.
- Amigo? Você tem amigos?
- Muito engraçado...
Miguel aproximou-se, cumprimentou os dois rapazes.
- Vamos então, Perez?
- Sim, vamos lá.
Deram as costas a Prado e entraram no carro. Antes de entrar, Perez disse que procuraria por ele quando voltasse, em seu apartamento, para que não se preocupasse porque ele tinha o endereço. Em seguida, o carro partiu. Prado ficou olhando o veículo se afastar e foi interrompido pelo celular. Atendeu, ainda pensativo, enquanto sussurrava “Eu sabia... ele é gay...”.
- Quem é gay? – espantou-se a voz suave do outro lado do aparelho.
- Ah, oi Grazi. Eu só tava lendo uma coisa aqui, não é nada. E aí, tá de folga hoje?
- Sim, você... hã... tá ocupado?
- Pra dizer a verdade, não. E tava pensando mesmo em te ligar. Tô morrendo de fome e queria te levar pra comer em casa...
A garota riu.
- Você não presta mesmo... já pegou seu carro?
- Ainda não. Pode me pegar?
- Tá, me dá vinte minutos que eu tô aí.
Desligou o celular e deteve-se um momento olhando para o aparelho. Aguardava ansioso receber uma ligação do banco falando sobre o emprego a que se candidatara. Estava confiante. Ainda não tinha tido notícias do emprego, então, enquanto nada acontecia, pelo menos se dedicava a seu novo empreendimento. Logo, seria conhecido como um grande empresário. Sorriu, mas sentiu o estômago roncar. “Tomara que a Grazi não demore...”, pensou, afinal, estava faminto.
*****
Perez e Miguel estavam rodando já há algum tempo, mas nenhum dos dois ousava quebrar o silêncio. Perez estava constrangido, enquanto Miguel, de óculos escuros e roupa social, parecia frio e alheio ao passageiro do carro. Mas a verdade é que estava esperando pelas perguntas que o outro ainda não ousava fazer. Então, Perez finalmente tomou coragem.
- Tá, muito bem... me explica como você sabe dessas coisas?
Miguel sorriu. Sem desviar sua atenção da pista, começou a falar.
- Como te disse, sou da polícia federal. Esbarrei com algumas coisas estranhas há alguns anos. Não fiquei convencido de que não era nada e fui verificar. Fiz muita pesquisa, contatei professores de história antiga, cavei o mais fundo que pude. E descobri algumas coisas.
- O que descobriu?
- Bem, basicamente é o seguinte. Há muito tempo, havia essa família. Eles tinham algo de especial, eles eram diferentes. Não consegui rastrear sua origem, mas eles eram caçadores de demônios. Durante a idade média, seus membros desapareceram quase que por completo na caça às bruxas. Muitos foram queimados. Parece que estavam perdendo a guerra com os demônios. Então eles conseguiram se esconder e continuar lutando na clandestinidade, sem que quase ninguém soubesse.
- E o que aconteceu?
- Bom, eu consegui rastrear a genealogia até os dias atuais... o que me levou a você...
- O quê?
- É isso Perez, você é descendente direto dessa família. Por isso o ritual com sangue.
- Mas... – Perez parecia perdido – não faz sentido... por que meu pai deixaria um ritual de libertação de demônios pra mim?
- É o que vamos descobrir. – disse Miguel, parando o carro do outro lado da rua do antigo orfanato Raio de Sol.
Desceram do carro e caminharam em silêncio pela entrada sombria e aparentemente abandonada do enorme prédio. O local parecia deserto. A porta estava aberta, mas não havia ninguém na recepção e o balcão de madeira todo empoeirado dava mostras de que ninguém estivera ali há algum tempo.
- Tem certeza de que é aqui...? – perguntou Miguel, temeroso.
- Claro que tenho, tá achando que tem um burro aqui?
- De forma alguma... – a voz vinha do corredor esquerdo à entrada, e Perez reconheceu-a de imediato, era da freira que lhe entregara o diária, a irmã Dalva – Afinal – continuou – você sempre foi um dos primeiros da sala, não?
- Como sabe? – espantou-se Perez, virando-se para ela e notando que seus cabelos pareciam desgrenhados e sua roupa suja, diferente do asseamento que notara na visita anterior.
- Eu sei tudo sobre você, Perez. – sua voz começou a torna-se mais firme, enchia todo o salão – Sei sobre sua vida e, principalmente, sei que você cumpriu sua missão. Você abriu o portal. E agora, não precisamos mais de você.
Perez e Miguel entreolharam-se. O espanto na cara de ambos era um espelho de medo e dúvida. A freira sorriu.
*****
Prado estava junto ao fogão, temperando a comida, enquanto Graziela, de costas para ele, lidava na pia com as bebidas. Trabalhar como bargirl havia lhe conferido algumas habilidades úteis como, por exemplo, preparar drinques especiais e saborosos. De repente, sem que ela esperasse, Prado abraçou-a por trás, colocando a cabeça por sobre seu ombro. Ela deu um sorriso e acertou-lhe com uma cotovelada, sem força, mas apenas o suficiente para que ele a soltasse. Lidar com engraçadinhos que “avançam o sinal” também era outra de suas habilidades adquiridas no bar onde trabalhava.
- E então... – perguntou Perez, afastando-se com um sorriso malicioso – Já pensou na minha proposta?
- Já sim e não adianta que não vou me casar com você! – respondeu de pronto a garoto, virando-se só um pouco para sorrir.
- Essa não... na proposta de emprego, doida! – riu.
- Ah, essa proposta? Bom, a resposta também é não.
- Ué? Por quê? Já disse que cubro o salário que ganha como bargirl.
- O problema não é dinheiro.
- Então qual é? Não quer que saibam que você sai com o chefe?
- Palhaço...
- Tá, sério, qual o problema então?
- Bom, primeiro que vocês estão começando...
- Não exatamente, - interrompeu Prado – o Perez já tá com a loja há um tempo razoável, só vamos expandi-la.
- Tá, certo, mas a parte da lan house é nova. E eu não entendo nada de computador, vou fazer o quê? Servir bebidas semi-nua para seus clientes?
- Hum... até que a idéia não é má... faz serviço “personal”?
- Se você pagar o preço... – respondeu Grazi, depois de sorrir e mandar um olhar sapeca de soslaio.
- Nesse caso, acho que vou cancelar o seu contrato de trabalho na loja... e ficar com as apresentações semi-nuas só pra mim! – dizendo isso, avançou para cima da garota, mas foi interrompido antes de alcançá-la.
- Melhor parar por aí... ou vamos ter lingüiça no almoço... – disse a jovem, com faca em riste e ainda sorrindo.
Miguel parou onde estava. Olhou para abaixo da própria cintura. “Eu odeio lingüiça...”, disse. Mas Grazi recolheu a faca, aproximou-se e o beijou. “Quanto tempo de comida no fogo ainda?”, perguntou, num sussurro.
- Acho que uns vinte minutos... – respondeu Prado, também num sussurro.
- É o suficiente! – terminou, beijando novamente o rapaz, com mais voracidade.
*****
Antes mesmo que Perez tentasse entender o significado das palavras da freira, ela se investiu contra ele. Miguel tentou impedi-la, mas foi atingido por um golpe que o fez voar alguns metros, caindo quase desacordado próximo à parede. Perez recuou e a freira reduziu a velocidade. Tinha um sorriso sinistro no rosto, que logo se tornou uma gargalhada insana.
- É hora de encontrar “papai”! – zombou, com uma voz gutural e a face transfigurada.
O rapaz quase entrou em pânico, mas conseguiu se conter. Buscou uma saída, mas a freira demoníaca estava entre o corredor e entre a saída, ele estava encurralado no salão. Mesmo assim, deu as costas e correu. As janelas tinham barras de ferro enormes, não havia como sair por nenhuma delas. No fundo do salão havia outra porta. Experimentou, mas estava trancada. Virou-se para o centro e foi recebido por um golpe que mais parecia um coice de um cavalo. Caiu atordoado, sentiu o gosto de sangue na boca e a visão turva. A pouca claridade do ambiente dificultava tudo. Levantou-se e recebeu novo golpe, mas dessa vez não foi atirado ao chão, pelo contrário, o monstro que o atacava levantou-o, prendendo-o pelo pescoço, segurando com uma só mão. O riso no rosto desfigurado da criatura era assustador, monstruoso, mortal. E Perez mal podia respirar. Deu uma tossida e cuspiu, involuntariamente, um pouco de sangue no rosto de irmã Dalva. A freira gemeu, soltou seu pescoço e recuou, com uma das mãos no rosto. Perez caiu de joelhos, tentou se levantar, mas mal podia ficar em pé. A respiração da freira tornou-se pesada e descompassada. Então ele teve uma idéia. Decidiu partir para o ataque, afinal, era tudo que lhe restara. Não fizesse isso, de qualquer forma, assim que se recuperasse, a criatura monstruosa daria fim à sua vida. Mas não partiria de mãos limpas. Não. Tinha um plano. Uma teoria. Cuspiu o sangue que pôde nas mãos. Esfregou-as para espalhar e com as forças que ainda lhe restava, atirou-se com ferocidade contra a freira que não esperava o ataque e foi pega de surpresa. Conseguiu juntar as mãos no rosto da criatura que gemia e dava berros de agonia. Parecia queimar. Em seguida, desmaiou. Perez deixou-a cair, afastou-se um pouco, mal podia continuar acordado. Sentia as mãos queimarem e parecia ter azia, mas com uma intensidade que jamais sentira. Em seu estômago, parecia acumular-se uma bola de fogo. Em seguida, irmã Dalva abriu os olhos. Estavam cheios de lágrimas. Olhou para Perez, parado atônito a alguns passos.
- Obrigado... – disse, com a voz rouca e fraca – por me salvar disso...
Perez sentiu que ia desmaiar, mas foi seguro por Miguel que parecia recuperado quase que plenamente. Ajudaram irmã Dalva a se levantar.
- Perdoe-me... por tudo... – apressou-se em dizer a senhora, que aparentava mais velha e frágil do que antes.
- O que houve? – perguntou Miguel.
- Eu fui... possuída... – revelou a freira, claramente constrangida – esse... demônio, estava dentro de mim e... controlava minhas ações... ele forjou o diário que entreguei a você, Perez. Era tudo um artifício para que você fizesse o ritual.
Mas Perez sequer deu atenção ao que irmã Dalva dizia. Estava mal. Sequer conseguia ficar consciente, apoiava-se em Miguel para não cair.
- Miguel... – disse enfim – me leva pra casa... preciso descansar...
- Mas... e a irmã Dalva? Ela pode precisar de ajuda e também pode nos dizer muito sobre esses demônios, o ritual e tudo o mais...
- Só. Me. Leve. Pra. Casa! – bradou Perez, firme e pausadamente, mas com tanto vigor que fez as poucas luzes do prédio piscarem.
- Ele está certo. – concordou a freira – Leve-o para casa. Depois conversaremos. Ele precisa descansar.
Miguel ainda quis discutir, mas notou que seria em vão e desistiu. Deixou a freira sob a promessa de que voltaria e fez todo o caminho de volta com Perez semi-desperto e em silêncio ao seu lado. Deixou-o no apartamento de Prado. O rapaz subiu até o terceiro andar, bateu à porta. Do lado de dentro, ouviu uma reclamação: “Pô, eu te dei a chave pra quê?”. Quando Prado abriu a porta, deparou-se com Perez e tomou um susto. Seu sócio tinha as roupas sujas, manchas de sangue nas mãos e no rosto, e a cara péssima.
- E aí, posso entrar? – perguntou, demonstrando esforço.
- Hã... claro... o banheiro fica à esquerda...
Perez passou por ele sem dar satisfações e entocou-se no banheiro. Ligou a ducha e entrou embaixo da água sem nem tirar as roupas. A coisa no seu estômago parecia querer sair. Mal teve tempo de abrir o vaso sanitário e vomitar algo nojento, catarro e sangue. Uma mistura escura, quase negra. Sentou-se encostado à parede, a água caindo sobre seu corpo. Então, fechou os olhos e sentiu que as lágrimas fugiam. Sabia o que tinha feito. Não havia matado o demônio. Não, nada disso. Apenas o tinha tirado da freira e o prendido dentro de si. Podia sentir o demônio dentro dele. Seu próprio demônio interno para se preocupar.

sexta-feira, 16 de novembro de 2007

Episódio 6 - A Caixa de Pandora






A mãe de Perez estava no hospital havia alguns dias. Apesar de estar em coma, estava estabilizada e os médicos diziam que as chances dela se recuperar eram grandes. Essa esperança fazia com que o rapaz desse prosseguimento à vida sem se deixar abater por demais. Além disso, a leitura do diário do pai o mantinha ocupado, interessado e intrigado com o conteúdo. Ainda não conseguira entender ou sequer decifrar a maioria das páginas. As folhas faltando pareciam importantes e muitas vezes a caligrafia era totalmente ilegível. Mas ele prosseguiria com calma e paciência. No momento certo, quem sabe, desvendaria os segredos ali escondidos.

- “Patrão”...? – os pensamentos de Perez foram interrompidos por Rogério. Ele olhou para o seu funcionário parado à porta da oficina como se saísse de um transe. – O tal de Prado tá aí, quer falar com você...

Perez concordou com a cabeça e fez sinal que já ia atender. O que o engravatado enxerido poderia querer agora? Deixou de lado o computador que estava consertando, limpou a mão numa flanela apropriada e foi para frente da loja, ver o que seu visitante queria. Encontrou-o com um sorriso largo no rosto, cabelo esculpido com gel, camisa e calça social, de sapatos, mas sem gravata. Estendeu a mão para cumprimentá-lo e tão logo terminaram o cumprimento, procurou ir direto ao assunto.

- E então... queria falar comigo...?

- Sim. Estive pensando na última conversa que tivemos e tive uma grande idéia!

- Que seria...?

- Uma sociedade! O que acha? Eu andei pesquisando e procurando algo em que investir meu dinheiro, sabe, começar um negócio próprio e tal. Fiquei observando e estudando sua loja e acho que seria um bom investimento, pra nós dois! Podemos ampliá-la e... – Perez interrompeu-o.

- Ow, peraí... ficou “observando e estudando minha loja”? Quer dizer que andou me espionando? Que papo é esse?

- Calma, era apenas uma pesquisa de mercado, não fique bravo como se eu tivesse bancado o paparazzo em sua vida pessoal. E além disso, eu tenho de saber no que vou colocar meu dinheiro...

- Não vai colocar seu dinheiro. Não quero uma sociedade com você.

- Mas você nem viu minha proposta!

- E nem quero ver!

- Não seja burro, vai ser muito lucrativo pra você!

- Não quero saber. Não quero ampliar minha loja. Não quero seu dinheiro. Não quero sociedade. Você ficou louco? Eu mal te conheço!

- Não seja cabeça-dura... prefere ficar pra sempre com essa lojinha ganhando só para comer e cuidar da sua mãe? Vamos lá, tenha imaginação!

- Eu tenho imaginação. E quer saber o que mais? Eu tenho amor próprio e pra mim você não passa de um fanfarrão arrogante, um garoto mimado metido a esperto. Agora, se puder me dar licença, tenho de voltar ao trabalho. Na minha loja. Tenha um bom dia. – deu as costas para seu interlocutor e sem olhar para trás voltou para a oficina. Prado ficou parado, vendo-o partir. Olhou para Rogério, obviamente constrangido do lado de dentro do balcão: “Você tem um chefe muito idiota...”, disse, antes de dar as costas e ir embora.

*****

Prado saiu da loja de Perez quase furioso. Respirou fundo, contou até dez e recobrou o controle. Tinha de estar calmo, pois tinha uma entrevista de emprego num banco não muito longe dali. E já que a sociedade tinha sido um fracasso, melhor que conseguisse a vaga no banco. Ficar desempregado começava a ficar desesperador, as contas ainda estavam todas lá, mas o dinheiro só fazia diminuir. Pelo menos seu carro ficaria pronto logo e não teria mais de depender de metrô, ônibus ou caronas.

Chegou ao banco pouco antes que o suor começasse a incomodar. Passou pela porta giratória e se informou com um funcionário que vestia um colete laranja com os dizeres “Posso ajudar?”. Passou pelo segurança, pelos caixas e foi até a última mesa do fundo do banco, que estava vazia. Logo, um senhor de meia-idade, vestido de forma impecável e com óculos com um formato um pouco antigo no rosto apareceu, carregando alguns papéis.

- Pois não? – disse, solícito.

- Bom dia. Sou o Prado, vim para a entrevista. – respondeu, estendendo a mão para um cumprimento.

- Ah sim, sente-se aí, vamos conversar.

Prado sentou-se e conversaram por alguns minutos. Era uma vaga de gerente regional, função simples que ele poderia executar com maestria. O salário era baixo, comparado com o seu anterior, mas tinha chances de progredir no emprego e voltar a crescer profissionalmente, então, estava disposto a aceitar sem demora.

- Você tem um bom currículo, Prado, embora seu último salário esteja bem longe do que posso oferecer...

- Não tem problema, seu Waldir. Eu aceito começar de baixo e o salário que me propôs está ótimo de início. Não comecei ganhando esse salário no meu outro emprego, eu o conquistei com o tempo e se tiver uma oportunidade, vou agarrar com toda força.

O homem sorriu.

- Muito bom, esse seu espírito é inspirador. E suas referências do emprego anterior são muito boas, acho que você vai trabalhar pra mim em breve, Prado.

Foi a vez de Prado sorrir.

- Estou ansioso, sr.

Em seguida, a entrevista terminou. O currículo de Prado seria analisado, mas a entrevista tinha sido boa e ele tinha certeza de que até o fim da semana receberia a confirmação para começar no novo emprego. Enfim as coisas começavam a dar certo novamente. Já não era sem tempo! Saiu do banco caminhando de peito estufado, observando aqui e ali as moças que trabalhavam, avaliando qual poderia servir-lhe de “presa”. No entanto, assim que ganhou as ruas, sentia uma vontade muito forte de encontrar-se com Graziela. Estranho... será que estava se apaixonando por ela ou era apenas carência pelos problemas que vinha enfrentando ultimamente? Fosse o que fosse, ligaria para ela mais tarde, para contar a novidade. Sabia que ela ficaria feliz e o sorriso dela era tão belo que parecia ser capaz de iluminar um cômodo inteiro... opa! Melhor se controlar. Estava tão eufórico que estava beirando a cafonice com textos poéticos malucos! E isso não era nada bom para alguém racional como ele. Ligaria para ela de qualquer forma, mais tarde, apenas para dizer que estava se arrumando novamente.

*****

Embora tivesse expulsado sem muita elegância Prado de sua loja, Perez ficara o dia todo trabalhando com a proposta na cabeça, incomodando seus pensamentos e afetando sua concentração. Ampliar os negócios até que não era má idéia. Mas não podia depender de um sócio, ainda mais de um desconhecido como Prado. Até gostava dele, mas não a ponto de confiar para uma sociedade. Mas, ah, estava cansado. Trabalhara o dia todo. Agora, já noite, tinha acabado de sair do banho e preparou um lanche. Sentou-se no sofá e voltou a ler o diário enquanto comia. Achou, finalmente, algo interessante que não tinha notado antes. Um ritual de proteção contra demônios. E, depois do que vira, não tinha mais dúvidas em acreditar que tais coisas existiam. Terminou o sanduíche e o refrigerante, colocou na pia e voltou ao diário. Leu atentamente as instruções para o ritual. Parecia relativamente simples. Precisava basicamente de sal, alho, um símbolo religioso qualquer e... sangue? Hum, isso era difícil. E o pior, tinha de ser o seu próprio sangue. E agora? Faria isso? Parecia loucura. Mas, por outro lado, não custava tentar.

Preparou os ingredientes e juntou-os na oficina. Um círculo de sal no chão, alho nos quatro pontos cardeais e o símbolo religioso no centro. Com uma faca lavada com água corrente e fervida até evaporar, fez um corte no braço. Gemeu de dor, mas era tarde para recuar. O sangue pingou sobre o símbolo. Leu as palavras que havia no diário. Uma espécie de oração, em que língua, ele não sabia. Repetiu por três vezes. Nada aconteceu. Esperou mais um pouco e só havia o silêncio. Deu um suspiro de frustração. Como podia ser tão ingênuo e acreditar nisso tudo? Até as magias de Harry Potter pareciam mais autênticas. Levantou-se e com o braço ainda ensangüentado, subiu as escadas para lavar-se no banheiro.

Terminou de limpar o sangue e estava enxugando o braço e as mãos com uma toalha quando sentiu cheiro de fumaça. Teria deixado ligado o fogão. Correu para a cozinha e o cheiro vinha da oficina. Desceu pelas escadas como um raio e não podia acreditar no que via. Dentro do círculo de sal, onde fizera o ritual de proteção, havia uma pequena fogueira. As chamas elevavam-se e pareciam ganhar vida de repente. Algumas faíscas voavam pela oficina, o fogo parecia tomar forma, rostos surgiam e pareciam zombar dele. Assim que recuperou o controle foi procurar o extintor que estava na loja. Mas o fogo começou a se espalhar. Assim que atingiu os computadores que estavam para reparo, alguns monitores explodiram. E as chamas começaram a se alastrar e ganhar forma. Perez tentava lutar com o extintor, diminuir o fogo, mas parecia inútil. Um monitor explodiu logo ao seu lado, os estilhaços atingiram seu rosto e seu pescoço, a fumaça o fez tossir, perdeu o equilíbrio e caiu. Seus olhos lacrimejavam e sua garganta ardia, era difícil respirar. Acabou perdendo os sentidos.

*****

Miguel viu a fumaça de longe. Acelerou ainda mais seu carro, pois estava quase certo que aquele era um sinal nada bom. Assim que chegou à casa de Perez, teve confirmação de seus medos. O lugar estava tomado pelas chamas. Já podia ouvir sirenes ao longe, alguns curiosos juntavam-se na frente da loja, alguns até tentavam ajudar de alguma maneira, com baldes de água. Desceu do carro, olhou ao redor e viu que Perez não estava ali. Isso quer dizer que estava lá dentro. E isso também queria dizer que ele tinha de entrar, tira-lo de lá. Mas como? A porta de ferro da loja estava fechada. Com certeza, o vidro por trás dela já devia estar destruído, mas como passar pela porta? Teve uma idéia. Pediu ajuda a algumas pessoas que estavam ali. Pelo canto da loja, apoiando-se na parede e com a ajuda de dois homens, conseguiu subir o suficiente para alcançar o pequeno parapeito do segundo andar. Com muita dificuldade, conseguiu equilibrar-se sobre ele e forçar a janela da cozinha. Estava trancada, mas os vidros haviam se estilhaçado. Retirou o que pôde com a mão, tomando cuidado para não se cortar. Conseguiu abrir caminho o suficiente para entrar. O calor era infernal. O fogo lambia as paredes. Respirou fundo e conseguiu prosseguir. Olhou rapidamente no quarto e no banheiro, quase que totalmente destruídos e Perez não estava em nenhum dos dois lugares. Desceu as escadas, rezando para encontrar logo o rapaz, pois a fumaça já o estava cegando e sua garganta ardia com muita força. Caminhou abaixado, para evitar intoxicar ainda mais e encontrou Perez desmaiado perto da porta que ligava a loja à oficina. Chegou até ele e conseguiu fazer um apoio para carregá-lo. Arrastou-o até a frente da loja. Mas ainda não tinha como sair. Pelo barulho lá fora, no entanto, sabia que os bombeiros haviam chegado.

- Socorro!! – gritou, o mais alto que pôde – Aqui!! Estamos aqui!!

Ouviu um murmúrio, alguém gritou para se acalmar que iam tirá-los de lá. Em seguida, a porta de ferro começou a ser atingida com força. Miguel protegeu os olhos com uma das mãos, a fumaça mal permitia que ele os mantivesse abertos.

Felizmente, não teve de esperar muito. Alguns minutos foram suficientes para que os bombeiros conseguissem forçar a porta, erguê-la o suficiente para que fossem resgatados. Apenas um bombeiro carregando um machado entrou e ajudou Miguel a carregar Perez.

Nesse momento, Perez já estava recuperando os sentidos. Foi levado até uma ambulância, mas insistia estar bem. Mesmo assim, foi colocado numa máquina para fazer uma inalação, por causa da enorme quantidade de fumaça que respirara. Miguel o acompanhava.

- O que aconteceu? – perguntou, vendo a expressão desolada no rosto de Perez.

- Eu... não sei... (cof-cof)... – respondeu, hesitante, entre tossidas.

A conversa foi interrompida por um médico que ordenou que a ambulância levasse ambos para o hospital. A maca foi recolhida e, de sirene ligada, o veículo se dirigiu para o hospital mais próximo.

*****

Perez estava internado há horas. Não conseguia dormir. Ficava pensando no ritual, no incêndio e que tinha perdido praticamente tudo. Como poderia reconstruir a loja, pagar pelos computadores e tudo o mais que havia se queimado? Estava ferrado, totalmente. Como pagaria pelos cuidados médicos da mãe?

- Como está se sentindo?

Estava tão absorto em pensamentos que sequer notou a aproximação de Miguel, seu salvador.

- Estou bem... como entrou aqui? Não é horário de visitas.

- Eu tenho alguns amigos no hospital, isso me dá algumas regalias. – respondeu, parando ao lado de sua cama e colocando as mãos nos bolsos – E então, vai me contar o que aconteceu?

- ...Você não acreditaria... – divagou Perez, virando o rosto para o outro lado.

- Não acreditaria em quê? Que coisas estranhas têm acontecido, como pessoas malucas tentando te matar e incêndios misteriosos? Ah, qual é, me dá uma chance...

- Eu... não sei o que aconteceu...

- Tá, ok. Mas alguma coisa aconteceu. Notou algo estranho, sei lá, qualquer coisa?

Perez olhou-o de soslaio. Miguel suspirou e sentou-se na cadeira ao lado da cama.

- Vamos lá. Olha, escuta, eu quero ajudar. Eu não sou repórter. Na verdade, sou um agente federal. Por isso te procurei.

Perez olhou com os olhos arregalados.

- Calma. É que eu tenho uma teoria. Uma coisa bem louca e que pode envolver você ou não. Pelo jeito, é provável que sim.

- Que tipo de teoria?

- Uma coisa... hã... como eu vou dizer... você acredita em demônios?

- Bom... mais ou menos...

- É? E o que sabe então? Digo, sobre o assunto?

- Ah, eu andei lendo umas coisas... aliás, acho que o incêndio pode ter a ver com isso... eu fiz um ritual de proteção...

- Ritual de proteção? De onde tirou isso, da internet?

- Não, do diário do meu pai, que encontrei há alguns dias. Achei que era meio que besteira, mas decidi arriscar. Consistia em juntar sal, alho... e meu sangue...

Miguel levou a mão ao rosto.

- Isso não era um encantamento de proteção. O que você fez foi abrir a porta para os demônios.

Perez arregalou ainda mais os olhos, mas não disse nada. Miguel se levantou, pôs a mão em seu ombro.

- Descanse. Depois teremos muito que conversar.

Antes que Perez pudesse retrucar, seu interlocutor deu as costas e saiu apressado. O quarto permaneceu em silêncio absoluto e logo depois Perez adormeceu.

Na manhã seguinte, Perez conseguiu sair do hospital e voltar para o que restou de sua casa, que era muito pouco, aliás. Nem chegou a entrar nos destroços. Ficou olhando desolado da calçada por alguns minutos. Seus olhos estavam marejados, mas não deixou que as lágrimas rolassem.

- Oi, vim saber se está tudo bem.

Antes mesmo de virar-se, Perez sabia de quem era a voz macia, suave, que se dirigia a ele. Era Ana. Enfermeira que muito o ajudara a cuidar da mãe, uma amiga e, talvez, no seu íntimo ele sabia que desejava isso, algo mais.

- Parece que tudo acabou... – disse, contendo o choro.

- Não fica assim. Você vai se recuperar.

Aproximou-se dele, e deu-lhe um abraço. Ficaram abraçados algum tempo, depois, beijaram-se. Um beijo tímido, quase como se fossem adolescentes. Depois se entreolharam, tão logo o beijo terminou. “Hei...”, disse Ana, tentando parecer simpática e animar Perez. O rapaz deixou escapar um sorriso triste.

- Acho que só me resta uma coisa a fazer... – disse, desvencilhando-se dela.

Pegou o celular, ligou para um número que esperava nunca ter de ligar. Alguém atendeu do outro lado.

- Prado? É o Perez, tudo bem? Escuta... hã... ainda tá interessado em sociedade?

terça-feira, 23 de outubro de 2007

Episódio 5: Anjos ou Demônios





Já passava das dez da manhã e Perez trabalhava com mais sono do que o habitual. Seus olhos estavam pesados e pareciam estar cheios de areia. Tudo porque passara a maior parte da noite lendo o diário do pai. Pelo menos as páginas que não se perderam no misterioso incêndio localizado. Mas ainda estava confuso. O diário falava sobre demônios, sobre combatê-los e sobre vários tipos de criaturas, mas não explicava quem eram seus pais e muito menos o que ele tinha a ver com isso. Na verdade, parecia mais um pequeno livreto de terror. Embora, no fundo ele sabia, explicava algumas coisas sobre os acontecimentos dos últimos dias, como a morte estranha do mecânico. Aliás, hoje era dia de prestar depoimento na delegacia. Depois, mais à noite, visitaria sua mãe no Retiro. Pensar nisso o fez sorrir por um instante, pois sabia que Ana também estaria lá. E a última conversa que tiveram estava muito agradável, pelo menos até serem interrompidos pelo ataque da mãe. Terminou de consertar o computador em que estava trabalhando, esfregou os olhos e foi falar com Rogério.
- Rogério, à tarde eu tenho de ir naquela audiência na delegacia.
- Tá bom, chefe! – respondeu o garoto, voltando-se novamente para o computador em que estava com várias janelas do msn piscando, provavelmente aguardando alguma resposta.
Perez voltou para dentro da oficina, passou por ela e subiu para sua casa. Foi direto para o banheiro. Tomaria um banho rápido, depois um lanche e iria para a delegacia, resolver logo esse problema que o estava incomodando.
*****
Prado ainda não entendia bem o que havia acontecido no dia anterior. Talvez porque estivesse embriagado. Seja como for, havia destruído um pedaço do banheiro e agora não tinha condições para consertar. Isso teria de esperar, pelo menos até que arrumasse outro emprego. Devia ter começado hoje mesmo a procurar, mas dormira demais. Mal se lembrara do que ocorrera. Só sabia que Graziela o ajudara a chegar à cama antes de sair para o trabalho.
Sentou-se na sala, ligou a tv e colocou num canal de desenhos. Era bem crescidinho, sabia disso, mas gostava dos desenhos. Principalmente os de heróis. Quem dera tivesse vindo de outro planeta ou tivesse um anel de poder... Mas era hora de pensar em coisas sérias. Como por exemplo, como iria ganhar dinheiro agora que estava sem emprego? Arrumar outro emprego parecia o mais óbvio, mas sabia que não teria a mesma renda, que não poderia bancar todos os custos. Talvez fosse a hora de empregar o dinheiro que receberia e abrir um negócio. Mas o quê? O que poderia ser rentável o suficiente para investir seu dinheiro? Teria de pensar nisso. Mas pensaria depois. Agora tinha de se arrumar para testemunhar na delegacia sobre a morte misteriosa do mecânico dias atrás.
*****
Perez chegara esbaforido à delegacia. Sua camisa começava a ficar com pontos marcados pelo suor. Não havia sol, o dia estava nublado, mas o calor era quase infernal, abafado, e também não havia vento. Subiu por uma pequena rampa de cimento utilizando o corrimão para avançar com mais velocidade. Chegou à recepção e a porta estava aberta. Um oficial da polícia olhou-o com desdém, sem dar-lhe muita importância.
- Oi, boa tarde. Estou aqui para o depoimento, tenho a intimação... – disse Perez, mostrando a pequena carta na mão.
Ainda sem lhe dar atenção, o policial pediu para que ele seguisse à direita e pegasse o corredor até a última sala para falar direto com o delegado. O rapaz assentiu com a cabeça e prosseguiu. Passou por duas salas que tinham as portas fechadas, grandes janelas de vidro e persianas impedindo que se visse dentro delas. Chegou então à última porta, que estava aberta. Dentro da sala, um homem de meia-idade, cabelos um pouco grandes, óculos de lentes enormes e bigode, esperava com feições impacientes.
- Boa tarde, delegado. – disse Perez – Vim para o depoimento...
- Está atrasado. – respondeu o homem, levantando-se da cadeira – Sente-se e aguarde um pouco.
Novamente Perez concordou com a cabeça e sentou-se num banco grande de madeira, que ficava logo ao lado da porta. Estava à mercê do delegado agora, restava esperar. Foi então que, ainda mais esbaforido, viu Prado chegando. Diferente do que podia imaginar, ele não estava engravatado e com cabelo meticulosamente esculpido em gel. Usava uma calça jeans não tão nova, um “sapatênis” que lembrava os de jogadores de boliche e uma camisa azul de botões, que tinha o último aberto.
- Uh, pensei que eu tava atrasado... – disse, puxando conversa com Perez, e dando-lhe a mão para um cumprimento.
- E está. – disse Perez, esticando a mão para responder ao cumprimento de Prado e dando lugar no banco para que o rapaz sentasse.
Assim que Prado sentou-se, o delegado deixou a sala, fechando a porta atrás de si. Os dois se entreolharam.
- É... parece que agora vai demorar mais ainda... – disse Perez.
- É. Não que eu esteja reclamando, já que não tenho mais nada pra fazer mesmo...
- Por quê? Tá de férias?
- É... – riu de soslaio – Férias eternas...
- Tá desempregado?
- Pois é, perdi meu emprego. Disseram que meu salário era muito alto. Há-há... e você, tá trabalhando?
- Eu tenho uma loja de informática. Sabe, conserto micros.
- Hum. Legal. E o dinheiro é bom? Quer dizer, to pensando em abrir alguma coisa, mas ainda não sei o quê...
- Ah, eu trabalho pra caramba e quase não tenho vida social... mas paga minhas contas.
- Bom. E o carro, já consertou?
- Não, ainda não. E o seu?
- O meu? Putz, caiu uma árvore em cima, tá na oficina. Por isso atrasei. Mas não faz mal, se não arrumar emprego logo, nem vou poder pagar as prestações mesmo... – deu uma gargalhada controlada - E que livro é esse que tava lendo quando cheguei? Auto-ajuda?
Perez olhou-o com reprovação.
- Qualé? Auto-ajuda? Dá um tempo... é um diário. Era do meu pai.
- Ah... entendi... seu pai escrevia muito então?
- Não sei bem, fui adotado e só consegui esse diário ontem.
- Ah, que legal, então tá lendo e sabendo sobre seu pai verdadeiro? Legal...
- Mais ou menos. Não é bem um diário do tipo, “oi, eu sou fulano, hoje me aconteceu isso e aquilo”... é mais como um manual, anotações espalhadas, meio desconexas, sei lá. Ainda tô tentando entender. Tem um pedaço que se queimou.
- Interessante. Deve estar sendo uma leitura interessante.
- Um pouco. Acho que explica algumas coisas, mas cria outras novas.
- Sei, é mais ou menos como assistir Lost, né? – riu Prado, referindo-se ao seriado televisivo.
- Não sei, quase não vejo tv.
- Sério? Vai dizer que nunca assistiu Lost?
- Vi alguns comerciais na Globo, mas faz tempo...
- Não, na Globo não, tem de assistir com som original. Pega na locadora. Você tem dvd, não tem?
- Tenho...
- Então pega e assiste cara, vale a pena. A história é tipo assim, vou te contar um pouco, mas fica tranqüilo que não vou estragar nenhuma surpresa, hehe.
- Tá bom... – disse Perez, sem muito ânimo.
Muitos minutos de conversa depois, finalmente o delegado voltou. Abriu a porta e, só depois de sentar-se atrás da mesa, chamou os dois para entrar.
O depoimento demorou um pouco, conferiram as informações com as informações anteriores, pra ver se o que diziam ainda batia e tudo indicava mesmo um acidente. Perez ainda tinha alguns arranhões da luta para provar isso. Prado era quase uma testemunha, já que participara pouco da luta, mas também respondia a processo.
- Bem, senhores, o resultado deve demorar um pouco ainda, mas parece que tá tudo certo. Quando tiver algo, vocês serão novamente intimados.
Agradeceram e saíram.
- É, parece que não vai dar nada mesmo. Ainda bem! – suspirou Prado.
- Claro, não fizemos nada. Foi um acidente. Bom, é isso aí. Boa sorte.
- Sim... claro... até... – respondeu Prado, com feição de cão sem dono.
Perez deteve-se um momento.
- Você tá a pé, né? Quer uma carona? Eu posso te deixar em algum lugar.
- Ah, se for caminho pra você...
- Tá, vamos lá.
Seguiram para o Uno de Perez. Estava arrumadinho, mas Prado não pôde deixar de notar que o carro parecia bastante desconfortável, ainda mais dado seus quase um e noventa de altura. Mas era melhor do que caminhar, ônibus ou metrô.
Prado pediu para que Perez o deixasse em algum lugar perto de um bairro de subúrbio. O rapaz olhou desconfiado, afinal, a pompa do outro não combinava com o tal bairro.
- Não, não, eu não moro lá. Só vou... hã... .visitar uma amiga...
Perez deu de ombros, afinal, não era da sua conta e continuou dirigindo. Logo chegou perto de uma pequena praça e parou o carro. Prado agradeceu, saiu do veículo e ficou esperando que o rapaz fosse embora. Depois que ele se foi, Prado atravessou a praça e chegou à casa de mãe Doraci. Bateu palmas. Uma, duas, três vezes. Até que Doraci finalmente apareceu. A mulher aproximou-se do portão.
- O que você quer? – perguntou, ríspida.
- Eu quero conversar... sobre o que aconteceu quando vim aqui.
- Não tem o que conversar. Você é maldito. Os espíritos são atraídos por você como mariposas pela luz!
- Ah, corta essa... como sou maldito? Nunca fiz nada de mais...
- E o que isso tem a ver? Eu disse que é maldito e não que é seu karma....
- Rá-rá... muito engraçado... mas então me explica, porque sou maldito?
- Eu não sei! – gritou, beirando o nervosismo – Quase todo mundo que vem aqui, não tem nada. Na minha vida inteira, vi um ou outro caso de coisas sobrenaturais verdadeiras. Mas quando você veio aqui... foi como se você fosse um pára-raios!
- Que loucura... Mas peraí, como viu pouca coisa de sobrenatural? Pensei que fosse vidente. – duvidou Prado.
- Sim, mas não quer dizer que eu veja anjos ou demônios. Eu apenas sinto algumas coisas. Quando pego na sua mão, quando olho em seus olhos... eu fico sabendo de algumas coisas. Mas olhar pra você é como olhar para a própria morte... você tem o mal dentro de você!
- Ow, vai com calma! Eu nunca fiz mal a uma mosca e a senhora já tá começando a me assustar.
- É pra ficar assustado mesmo. Tem o amuleto que te dei?
- Me deu? Eu paguei por ele!
- Tá, tá, mas você tá com ele?
- Tá em casa.
- Não deixe de usá-lo. Ele pode te proteger... ou não...
- Ou não? Mas que diabos de amuleto é esse?
- Escute senhor Prado, eu não tenho as respostas que busca. Não sei por que vejo todas essas coisas ruins em você, me parece uma boa pessoa. Mas eu vejo. Não posso mentir. Apenas... bem, apenas tome cuidado. O mal pode estar em qualquer lugar. Inclusive, dentro de você.
Prado arregalou os olhos. Não tinha mais argumentos contra a convicção de Doraci. E estava quase acreditando.
- Tá bom, melhor eu ir embora antes que aconteça alguma desgraça... – riu, tentando parecer tranqüilo.
- Não brinque, senhor Prado. E tome cuidado.
- Tá, pode deixar... vou fazer um seguro de vida... – disse, já caminhando de volta para a praça.
Assim que chegou, sentou-se um pouco. Estava à beira do pânico. Tudo parecia desmoronar de repente em sua vida perfeita. O emprego, o ótimo salário. E agora isso. E nem tinha como voltar pra casa, não fazia idéia onde tomar ônibus ou como chegar ao metrô. Pegou o celular e ligou para a única pessoa que podia ajudá-lo nesse momento.
- Graziela? Tava dormindo? Pôxa, desculpa te acordar... preciso de uma ajuda, será que tem jeito...?
*****
Mal o sol se escondeu no horizonte e Perez já estava a caminho do Retiro Paraíso. Tinha esperanças de que sua mãe estivesse melhor. Pelo menos não tinham ligado para ele durante o dia, o que já era um bom sinal. Parou o carro no estacionamento depois de atravessar o portão e cumprimentar o segurança que já o conhecia bem. Como de costume nesse horário, o estacionamento à direita da entrada estava quase deserto, com apenas alguns poucos carros. Não era hábito de parentes visitarem seus familiares idosos durante a noite, ainda mais em dias de semana. Melhor assim, não gostava de tumultos.
Depois de parar o carro, desligou a chave, fechou o vidro da porta ao lado do motorista e quando foi pegar sua carteira, no porta-luvas, um imenso inseto se chocou contra o pára-brisa. O impacto foi tão grande que chegou a assustá-lo. Pelo menos até perceber que era um inseto morto e espatifado. Mal teve tempo de tomar qualquer atitude, outro inseto chocou-se com o vidro, dessa vez com o da porta da esquerda. Olhou assustado e mais dois barulhos o puseram realmente em alerta. Seu carro parecia estar sendo bombardeado por insetos. Alguns forçavam o vidro, tentando entrar. Notou que havia abelhas, mosquitos e grandes besouros. Abriu a porta de supetão, desceu do carro com pressa e foi atacado pelos bichos. Levou algumas picadas das abelhas, os mosquitos voavam ferozmente contra seu rosto, o zumbido quase chegava a ensurdecê-lo. Deu um berro. Mas não tinha ninguém por perto para ouvir. Tentou defender-se. Deu golpes no ar e tapas contra o próprio corpo. As ferroadas começavam a doer. Encostou uma das mãos no carro, tentando encontrar um senso de direção. Conseguiu respirar um pouco. Com dificuldade, fixou os olhos numa pequena nuvem de insetos logo à sua frente, formando quase algo sólido.
- O que que é isso...? – murmurou retoricamente para si mesmo.
Aproveitou o respiro e tentou se concentrar. Lembrou-se do que dizia o diário do pai. O que era mesmo? Qual trecho? Era tudo tão confuso. Algo sobre demônios. Sobre forças da natureza. Sobre controlar pessoas e animais... não, tudo era tão bagunçado no diário, havia páginas queimadas, outras faltando. Os textos pareciam não ter começo meio e fim, não passavam de anotações desconexas. Voltou-se novamente para a nuvem e os insetos pareciam observá-lo. Aguardavam o próximo momento de atacá-lo. Concentrou-se. Tentou se lembrar de algo do diário que pudesse ajudá-lo, se é que isso era mesmo possível. Então, tão rápido como começou, o ataque acabou. A nuvem se dissipou, os insetos desapareceram. Ainda sem se recuperar, ouviu um som característico. Era seu celular. Olhou para ver quem estava ligando e era do Retiro. Nem se deu ao trabalho de atender, correu para a recepção. Ao chegar, encontrou a recepcionista ao telefone. Assim que o viu, a jovem, de cabelos longos e cacheados e trajando um elegante casaco verde-claro, voltou-se com ar preocupado.
- Sr. Perez, estava ligando para o senhor. É a sua mãe. Ela piorou, foi medicada, mas...
O coração do rapaz estava disparado e parecia que ia parar de bater a qualquer momento, tamanha era a palpitação.
- Mas o quê... – perguntou, com lágrimas quase se anunciando nos cantos dos olhos.
- Ela está em coma. – disse a garota, com uma voz cheia de sentimento – Ela foi transferida para o terceiro andar, para a UTI... – foi interrompida.
- Oi Perez. – era Ana.
- Ana! Oi, como está a minha mãe? – apressou-se ele.
- Não muito bem. Ela piorou, entrou em coma e... se não tiver melhoras, talvez nem possamos mantê-la aqui... talvez ela tenha de ir para um hospital. O médico estava com ela até agora há pouco.
- E...?
- Bom, ela está estável. Respirando por aparelhos...
Perez levou a mão ao rosto. Segurava o choro.
- Posso vê-la? – suplicou.
- Sim, vamos, eu te levo.
Subiram até a UTI, Perez calado, apenas ouvindo os detalhes do que havia ocorrido e o quadro médico da mãe. Ana já era mais do que uma amiga e falava com pesar. Enfim, chegaram ao quarto dela. Perez parou à porta, sem se aproximar. Sua mãe estava pálida, lembrava realmente um cadáver. Mas ele não queria que ela morresse, ela não podia morrer. Não era tão velha, mas era doente. Talvez isso pesasse realmente bem mais do que a idade. Encostou-se ao batente da porta. Ficou olhando para a pobre senhora, indefesa e sobrevivendo apenas graças aos aparelhos médicos ligados ao seu corpo. Ana se aproximou. Segurou em seu ombro com uma das mãos e esfregou o seu braço com a outra. Ele virou o olhar para ela, que deu um sorriso triste, mas companheiro. Em seguida, baixou a cabeça e saiu devagar. Perez voltou novamente sua atenção para a mãe. Tamanha era sua agonia que nem dava atenção às picadas que levara há pouco e que ainda latejavam. Mas não poderia deixar que ela morresse. Mas o que poderia fazer? Nada, a não ser rezar e esperar que os anjos ouvissem suas preces.