Já passava das dez da manhã e Perez trabalhava com mais sono do que o habitual. Seus olhos estavam pesados e pareciam estar cheios de areia. Tudo porque passara a maior parte da noite lendo o diário do pai. Pelo menos as páginas que não se perderam no misterioso incêndio localizado. Mas ainda estava confuso. O diário falava sobre demônios, sobre combatê-los e sobre vários tipos de criaturas, mas não explicava quem eram seus pais e muito menos o que ele tinha a ver com isso. Na verdade, parecia mais um pequeno livreto de terror. Embora, no fundo ele sabia, explicava algumas coisas sobre os acontecimentos dos últimos dias, como a morte estranha do mecânico. Aliás, hoje era dia de prestar depoimento na delegacia. Depois, mais à noite, visitaria sua mãe no Retiro. Pensar nisso o fez sorrir por um instante, pois sabia que Ana também estaria lá. E a última conversa que tiveram estava muito agradável, pelo menos até serem interrompidos pelo ataque da mãe. Terminou de consertar o computador em que estava trabalhando, esfregou os olhos e foi falar com Rogério.
- Rogério, à tarde eu tenho de ir naquela audiência na delegacia.
- Tá bom, chefe! – respondeu o garoto, voltando-se novamente para o computador em que estava com várias janelas do msn piscando, provavelmente aguardando alguma resposta.
Perez voltou para dentro da oficina, passou por ela e subiu para sua casa. Foi direto para o banheiro. Tomaria um banho rápido, depois um lanche e iria para a delegacia, resolver logo esse problema que o estava incomodando.
*****
Prado ainda não entendia bem o que havia acontecido no dia anterior. Talvez porque estivesse embriagado. Seja como for, havia destruído um pedaço do banheiro e agora não tinha condições para consertar. Isso teria de esperar, pelo menos até que arrumasse outro emprego. Devia ter começado hoje mesmo a procurar, mas dormira demais. Mal se lembrara do que ocorrera. Só sabia que Graziela o ajudara a chegar à cama antes de sair para o trabalho.Sentou-se na sala, ligou a tv e colocou num canal de desenhos. Era bem crescidinho, sabia disso, mas gostava dos desenhos. Principalmente os de heróis. Quem dera tivesse vindo de outro planeta ou tivesse um anel de poder... Mas era hora de pensar em coisas sérias. Como por exemplo, como iria ganhar dinheiro agora que estava sem emprego? Arrumar outro emprego parecia o mais óbvio, mas sabia que não teria a mesma renda, que não poderia bancar todos os custos. Talvez fosse a hora de empregar o dinheiro que receberia e abrir um negócio. Mas o quê? O que poderia ser rentável o suficiente para investir seu dinheiro? Teria de pensar nisso. Mas pensaria depois. Agora tinha de se arrumar para testemunhar na delegacia sobre a morte misteriosa do mecânico dias atrás.
*****
Perez chegara esbaforido à delegacia. Sua camisa começava a ficar com pontos marcados pelo suor. Não havia sol, o dia estava nublado, mas o calor era quase infernal, abafado, e também não havia vento. Subiu por uma pequena rampa de cimento utilizando o corrimão para avançar com mais velocidade. Chegou à recepção e a porta estava aberta. Um oficial da polícia olhou-o com desdém, sem dar-lhe muita importância.- Oi, boa tarde. Estou aqui para o depoimento, tenho a intimação... – disse Perez, mostrando a pequena carta na mão.
Ainda sem lhe dar atenção, o policial pediu para que ele seguisse à direita e pegasse o corredor até a última sala para falar direto com o delegado. O rapaz assentiu com a cabeça e prosseguiu. Passou por duas salas que tinham as portas fechadas, grandes janelas de vidro e persianas impedindo que se visse dentro delas. Chegou então à última porta, que estava aberta. Dentro da sala, um homem de meia-idade, cabelos um pouco grandes, óculos de lentes enormes e bigode, esperava com feições impacientes.
- Boa tarde, delegado. – disse Perez – Vim para o depoimento...
- Está atrasado. – respondeu o homem, levantando-se da cadeira – Sente-se e aguarde um pouco.
Novamente Perez concordou com a cabeça e sentou-se num banco grande de madeira, que ficava logo ao lado da porta. Estava à mercê do delegado agora, restava esperar. Foi então que, ainda mais esbaforido, viu Prado chegando. Diferente do que podia imaginar, ele não estava engravatado e com cabelo meticulosamente esculpido em gel. Usava uma calça jeans não tão nova, um “sapatênis” que lembrava os de jogadores de boliche e uma camisa azul de botões, que tinha o último aberto.
- Uh, pensei que eu tava atrasado... – disse, puxando conversa com Perez, e dando-lhe a mão para um cumprimento.
- E está. – disse Perez, esticando a mão para responder ao cumprimento de Prado e dando lugar no banco para que o rapaz sentasse.
Assim que Prado sentou-se, o delegado deixou a sala, fechando a porta atrás de si. Os dois se entreolharam.
- É... parece que agora vai demorar mais ainda... – disse Perez.
- É. Não que eu esteja reclamando, já que não tenho mais nada pra fazer mesmo...
- Por quê? Tá de férias?
- É... – riu de soslaio – Férias eternas...
- Tá desempregado?
- Pois é, perdi meu emprego. Disseram que meu salário era muito alto. Há-há... e você, tá trabalhando?
- Eu tenho uma loja de informática. Sabe, conserto micros.
- Hum. Legal. E o dinheiro é bom? Quer dizer, to pensando em abrir alguma coisa, mas ainda não sei o quê...
- Ah, eu trabalho pra caramba e quase não tenho vida social... mas paga minhas contas.
- Bom. E o carro, já consertou?
- Não, ainda não. E o seu?
- O meu? Putz, caiu uma árvore em cima, tá na oficina. Por isso atrasei. Mas não faz mal, se não arrumar emprego logo, nem vou poder pagar as prestações mesmo... – deu uma gargalhada controlada - E que livro é esse que tava lendo quando cheguei? Auto-ajuda?
Perez olhou-o com reprovação.
- Qualé? Auto-ajuda? Dá um tempo... é um diário. Era do meu pai.
- Ah... entendi... seu pai escrevia muito então?
- Não sei bem, fui adotado e só consegui esse diário ontem.
- Ah, que legal, então tá lendo e sabendo sobre seu pai verdadeiro? Legal...
- Mais ou menos. Não é bem um diário do tipo, “oi, eu sou fulano, hoje me aconteceu isso e aquilo”... é mais como um manual, anotações espalhadas, meio desconexas, sei lá. Ainda tô tentando entender. Tem um pedaço que se queimou.
- Interessante. Deve estar sendo uma leitura interessante.
- Um pouco. Acho que explica algumas coisas, mas cria outras novas.
- Sei, é mais ou menos como assistir Lost, né? – riu Prado, referindo-se ao seriado televisivo.
- Não sei, quase não vejo tv.
- Sério? Vai dizer que nunca assistiu Lost?
- Vi alguns comerciais na Globo, mas faz tempo...
- Não, na Globo não, tem de assistir com som original. Pega na locadora. Você tem dvd, não tem?
- Tenho...
- Então pega e assiste cara, vale a pena. A história é tipo assim, vou te contar um pouco, mas fica tranqüilo que não vou estragar nenhuma surpresa, hehe.
- Tá bom... – disse Perez, sem muito ânimo.
Muitos minutos de conversa depois, finalmente o delegado voltou. Abriu a porta e, só depois de sentar-se atrás da mesa, chamou os dois para entrar.
O depoimento demorou um pouco, conferiram as informações com as informações anteriores, pra ver se o que diziam ainda batia e tudo indicava mesmo um acidente. Perez ainda tinha alguns arranhões da luta para provar isso. Prado era quase uma testemunha, já que participara pouco da luta, mas também respondia a processo.
- Bem, senhores, o resultado deve demorar um pouco ainda, mas parece que tá tudo certo. Quando tiver algo, vocês serão novamente intimados.
Agradeceram e saíram.
- É, parece que não vai dar nada mesmo. Ainda bem! – suspirou Prado.
- Claro, não fizemos nada. Foi um acidente. Bom, é isso aí. Boa sorte.
- Sim... claro... até... – respondeu Prado, com feição de cão sem dono.
Perez deteve-se um momento.
- Você tá a pé, né? Quer uma carona? Eu posso te deixar em algum lugar.
- Ah, se for caminho pra você...
- Tá, vamos lá.
Seguiram para o Uno de Perez. Estava arrumadinho, mas Prado não pôde deixar de notar que o carro parecia bastante desconfortável, ainda mais dado seus quase um e noventa de altura. Mas era melhor do que caminhar, ônibus ou metrô.
Prado pediu para que Perez o deixasse em algum lugar perto de um bairro de subúrbio. O rapaz olhou desconfiado, afinal, a pompa do outro não combinava com o tal bairro.
- Não, não, eu não moro lá. Só vou... hã... .visitar uma amiga...
Perez deu de ombros, afinal, não era da sua conta e continuou dirigindo. Logo chegou perto de uma pequena praça e parou o carro. Prado agradeceu, saiu do veículo e ficou esperando que o rapaz fosse embora. Depois que ele se foi, Prado atravessou a praça e chegou à casa de mãe Doraci. Bateu palmas. Uma, duas, três vezes. Até que Doraci finalmente apareceu. A mulher aproximou-se do portão.
- O que você quer? – perguntou, ríspida.
- Eu quero conversar... sobre o que aconteceu quando vim aqui.
- Não tem o que conversar. Você é maldito. Os espíritos são atraídos por você como mariposas pela luz!
- Ah, corta essa... como sou maldito? Nunca fiz nada de mais...
- E o que isso tem a ver? Eu disse que é maldito e não que é seu karma....
- Rá-rá... muito engraçado... mas então me explica, porque sou maldito?
- Eu não sei! – gritou, beirando o nervosismo – Quase todo mundo que vem aqui, não tem nada. Na minha vida inteira, vi um ou outro caso de coisas sobrenaturais verdadeiras. Mas quando você veio aqui... foi como se você fosse um pára-raios!
- Que loucura... Mas peraí, como viu pouca coisa de sobrenatural? Pensei que fosse vidente. – duvidou Prado.
- Sim, mas não quer dizer que eu veja anjos ou demônios. Eu apenas sinto algumas coisas. Quando pego na sua mão, quando olho em seus olhos... eu fico sabendo de algumas coisas. Mas olhar pra você é como olhar para a própria morte... você tem o mal dentro de você!
- Ow, vai com calma! Eu nunca fiz mal a uma mosca e a senhora já tá começando a me assustar.
- É pra ficar assustado mesmo. Tem o amuleto que te dei?
- Me deu? Eu paguei por ele!
- Tá, tá, mas você tá com ele?
- Tá em casa.
- Não deixe de usá-lo. Ele pode te proteger... ou não...
- Ou não? Mas que diabos de amuleto é esse?
- Escute senhor Prado, eu não tenho as respostas que busca. Não sei por que vejo todas essas coisas ruins em você, me parece uma boa pessoa. Mas eu vejo. Não posso mentir. Apenas... bem, apenas tome cuidado. O mal pode estar em qualquer lugar. Inclusive, dentro de você.
Prado arregalou os olhos. Não tinha mais argumentos contra a convicção de Doraci. E estava quase acreditando.
- Tá bom, melhor eu ir embora antes que aconteça alguma desgraça... – riu, tentando parecer tranqüilo.
- Não brinque, senhor Prado. E tome cuidado.
- Tá, pode deixar... vou fazer um seguro de vida... – disse, já caminhando de volta para a praça.
Assim que chegou, sentou-se um pouco. Estava à beira do pânico. Tudo parecia desmoronar de repente em sua vida perfeita. O emprego, o ótimo salário. E agora isso. E nem tinha como voltar pra casa, não fazia idéia onde tomar ônibus ou como chegar ao metrô. Pegou o celular e ligou para a única pessoa que podia ajudá-lo nesse momento.
- Graziela? Tava dormindo? Pôxa, desculpa te acordar... preciso de uma ajuda, será que tem jeito...?
*****
Mal o sol se escondeu no horizonte e Perez já estava a caminho do Retiro Paraíso. Tinha esperanças de que sua mãe estivesse melhor. Pelo menos não tinham ligado para ele durante o dia, o que já era um bom sinal. Parou o carro no estacionamento depois de atravessar o portão e cumprimentar o segurança que já o conhecia bem. Como de costume nesse horário, o estacionamento à direita da entrada estava quase deserto, com apenas alguns poucos carros. Não era hábito de parentes visitarem seus familiares idosos durante a noite, ainda mais em dias de semana. Melhor assim, não gostava de tumultos.Depois de parar o carro, desligou a chave, fechou o vidro da porta ao lado do motorista e quando foi pegar sua carteira, no porta-luvas, um imenso inseto se chocou contra o pára-brisa. O impacto foi tão grande que chegou a assustá-lo. Pelo menos até perceber que era um inseto morto e espatifado. Mal teve tempo de tomar qualquer atitude, outro inseto chocou-se com o vidro, dessa vez com o da porta da esquerda. Olhou assustado e mais dois barulhos o puseram realmente em alerta. Seu carro parecia estar sendo bombardeado por insetos. Alguns forçavam o vidro, tentando entrar. Notou que havia abelhas, mosquitos e grandes besouros. Abriu a porta de supetão, desceu do carro com pressa e foi atacado pelos bichos. Levou algumas picadas das abelhas, os mosquitos voavam ferozmente contra seu rosto, o zumbido quase chegava a ensurdecê-lo. Deu um berro. Mas não tinha ninguém por perto para ouvir. Tentou defender-se. Deu golpes no ar e tapas contra o próprio corpo. As ferroadas começavam a doer. Encostou uma das mãos no carro, tentando encontrar um senso de direção. Conseguiu respirar um pouco. Com dificuldade, fixou os olhos numa pequena nuvem de insetos logo à sua frente, formando quase algo sólido.
- O que que é isso...? – murmurou retoricamente para si mesmo.
Aproveitou o respiro e tentou se concentrar. Lembrou-se do que dizia o diário do pai. O que era mesmo? Qual trecho? Era tudo tão confuso. Algo sobre demônios. Sobre forças da natureza. Sobre controlar pessoas e animais... não, tudo era tão bagunçado no diário, havia páginas queimadas, outras faltando. Os textos pareciam não ter começo meio e fim, não passavam de anotações desconexas. Voltou-se novamente para a nuvem e os insetos pareciam observá-lo. Aguardavam o próximo momento de atacá-lo. Concentrou-se. Tentou se lembrar de algo do diário que pudesse ajudá-lo, se é que isso era mesmo possível. Então, tão rápido como começou, o ataque acabou. A nuvem se dissipou, os insetos desapareceram. Ainda sem se recuperar, ouviu um som característico. Era seu celular. Olhou para ver quem estava ligando e era do Retiro. Nem se deu ao trabalho de atender, correu para a recepção. Ao chegar, encontrou a recepcionista ao telefone. Assim que o viu, a jovem, de cabelos longos e cacheados e trajando um elegante casaco verde-claro, voltou-se com ar preocupado.
- Sr. Perez, estava ligando para o senhor. É a sua mãe. Ela piorou, foi medicada, mas...
O coração do rapaz estava disparado e parecia que ia parar de bater a qualquer momento, tamanha era a palpitação.
- Mas o quê... – perguntou, com lágrimas quase se anunciando nos cantos dos olhos.
- Ela está em coma. – disse a garota, com uma voz cheia de sentimento – Ela foi transferida para o terceiro andar, para a UTI... – foi interrompida.
- Oi Perez. – era Ana.
- Ana! Oi, como está a minha mãe? – apressou-se ele.
- Não muito bem. Ela piorou, entrou em coma e... se não tiver melhoras, talvez nem possamos mantê-la aqui... talvez ela tenha de ir para um hospital. O médico estava com ela até agora há pouco.
- E...?
- Bom, ela está estável. Respirando por aparelhos...
Perez levou a mão ao rosto. Segurava o choro.
- Posso vê-la? – suplicou.
- Sim, vamos, eu te levo.
Subiram até a UTI, Perez calado, apenas ouvindo os detalhes do que havia ocorrido e o quadro médico da mãe. Ana já era mais do que uma amiga e falava com pesar. Enfim, chegaram ao quarto dela. Perez parou à porta, sem se aproximar. Sua mãe estava pálida, lembrava realmente um cadáver. Mas ele não queria que ela morresse, ela não podia morrer. Não era tão velha, mas era doente. Talvez isso pesasse realmente bem mais do que a idade. Encostou-se ao batente da porta. Ficou olhando para a pobre senhora, indefesa e sobrevivendo apenas graças aos aparelhos médicos ligados ao seu corpo. Ana se aproximou. Segurou em seu ombro com uma das mãos e esfregou o seu braço com a outra. Ele virou o olhar para ela, que deu um sorriso triste, mas companheiro. Em seguida, baixou a cabeça e saiu devagar. Perez voltou novamente sua atenção para a mãe. Tamanha era sua agonia que nem dava atenção às picadas que levara há pouco e que ainda latejavam. Mas não poderia deixar que ela morresse. Mas o que poderia fazer? Nada, a não ser rezar e esperar que os anjos ouvissem suas preces.
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