No sábado, Prado acordou com uma tremenda dor de cabeça, o que era raro. Estava acostumado a beber, mas nunca tinha dor de cabeça ou ressaca. Lembrou-se do carro amassado e decidiu procurar o tal de Perez. O rapaz parecia honesto o suficiente para cair em sua lábia e pagar o conserto do seu carro.
Não demorou para que chegasse ao endereço do cartão que recebera na noite anterior. Parou o carro numa das duas vagas de estacionamento que havia na calçada. Desceu, olhou para o amassado no carro e em seguida para a fachada da loja de informática. Ao seu lado direito, havia uma vitrine escura, mas era possível enxergar por ela algumas peças de computador. Entendia de informática o suficiente para diferenciar uma placa mãe de um drive de cd ou de um processador, mas estava desacostumado a lidar com essas coisas. Hoje em dia, quando seu computador tinha defeito, ele levava a uma loja, exatamente como essa, para que ele fosse consertado. Chegou até a porta de vidro que possuía duas maçanetas enormes, mas não precisou tocar em nenhuma delas, pois um lado estava aberto. Assim que passou pela porta um sinal sonoro foi emitido, indicando que alguém havia entrado. Faltavam poucos minutos para o meio-dia, a loja devia estar para fechar. Havia um balcão grande que pegava todo o fundo da loja, e atrás dele, um jovem de uns 20 anos manuseava um computador com tela de lcd não muito grande. Enquanto usava o micro, falava com um homem de meia idade que segurava pela mão um garoto de uns 7 anos. Prado aguardou com as mãos no bolso, quase impaciente. Tirou uma das mãos, a mesma que segurava o cartão que recebera na noite anterior e confirmou o nome de quem procurava. Não demorou muito para que o jovem atendente notasse a cara de insatisfação de Prado. O garoto, que tinha o cabelo curto bem aparado, olhos castanhos ligeiros e usava uma camisa um pouco apertada para seu tamanho, apressou-se em perguntar em que podia ajudar, achando, talvez, que corria o risco de perder um cliente.
- Eu tô procurando o Perez, ele está? – disse Prado, assim que o rapaz lhe deu alguma atenção.
O jovem então pediu um instante para o homem que estava sendo atendido por ele e dirigiu-se a uma porta que ficava na parede ao fundo, logo atrás dele. Abriu-a e disse alguma coisa; voltou e, em seguida, Perez apareceu. Sua cara era impassível e suas feições nada queriam dizer. Seus olhos verdes estavam imóveis e ele parecia mal respirar. Os cabelos um pouco desarrumados deixavam transparecer que preocupação com aparência não era sua prioridade. Com certeza ele nem devia saber o nome do perfume importado que Prado estava usando.
- Só um minuto... – disse Perez, balançando a cabeça e parecendo voltar a si de um transe.
Voltou para a sala de trás, provavelmente a oficina, enquanto Prado continuou aguardando, sem entender muito. Logo, o rapaz retornou, fechando a porta atrás de si.
- Rogério, tenho de resolver o problema do carro. Assim que terminar, você pode fechar a loja e ir pra casa.
- Pode deixar, Perez. – disse o garoto, voltando rapidamente a atenção para o cliente.
Prado estendeu a mão para cumprimentar Perez, o rapaz retribuiu sem entusiasmo e não se deteve, desvencilhou-se dele rapidamente e continuou andando, chegando ao estacionamento. Prado seguiu-o, vendo a cara de curiosidade do garotinho que fazia um verdadeiro contorcionismo com o braço do pai para tentar ver o que estava acontecendo. Quando chegou à calçada, Perez examinava o local da batida.
- Hum. – disse, colocando a mão no queixo – O estrago não foi muito grande. Acho que consigo um desconto na oficina aqui perto. Vamos até lá. – continuou, sem sequer esperar por opinião ou sinal de aprovação de Prado que, por sua vez, sentiu-se quase desafiado pelo rapaz que, a princípio, parecia apenas um caipira fácil de enrolar com um discurso pomposo.
Mas a dor de cabeça de Prado estava incomodando, então decidiu não criar caso e seguir o rapaz até a tal da oficina. Realmente o lugar era próximo, apenas há alguns quarteirões dali. Não era tão grande, pararam o carro no pátio. Havia alguns carros consertando, mas parecia estar quase deserto. Um homem de macacão azul e com a barba mal-feita saiu de dentro de uma pequena sala.
- Fala Perez, tudo bem?
- E aí, Roberto. Preciso que você dê uma olhada no meu carro e no dele, a gente teve um acidente ontem.
- Hum. – disse o homem, hesitando um pouco – Me dá um minuto que já olho pra você. O pessoal foi almoçar, vai voltar só lá pela uma hora, mas eu tô terminando e já vou ver. – concluiu, fazendo sinal com a mão para que aguardassem, e voltando para dentro da sala em seguida, sem esperar por resposta.
Perez encostou-se no próprio carro, torcendo para que Roberto não demorasse muito. Ele ainda tinha muito trabalho a fazer na loja. Prado despreguiçou-se, olhou no relógio para confirmar as horas e tentou puxar algum assunto.
- Então... você é dono daquela loja? – perguntou, tentando esboçar algum interesse.
- Sou... – respondeu Perez, seco e sem alterar a voz.
- Ah... – concordou Prado – e como vai indo? Digo, o movimento, como está?
- Bem... – respondeu Perez novamente, da mesma maneira.
Prado silenciou. Sabia lidar com pessoas, fazia isso com freqüência no banco. Mas jamais em sua vida havia se deparado com alguém tão desprovido de interesse e articulação. Pensou em insistir, mas, ao invés disso, pegou o celular.
- Dá licença, preciso fazer uma ligação. – Não que precisasse, queria apenas uma desculpa para encerrar aquela conversa ridícula.
Apanhou o celular, um aparelho preto e cheio de botões virtuais na tela, e tentou uma ligação para Graziela, a primeira garota que lhe veio à mente. Não havia sinal de linha. Tentou novamente e nada.
- Meu celular tá fora de área... – disse, aproximando-se novamente de Perez, que continuava no mesmo lugar com as mãos nos bolsos.
Perez fez cara de desentendido, mas com um leve levantar de sobrancelhas tirou as mãos dos bolsos, desencostou-se do carro e apanhou o celular, um aparelho miúdo e envolto por uma capa de plástico protetora. Tentou uma ligação, mas era como se o aparelho estivesse desligado. Deu um suspiro.
- Vou lá falar com o Roberto, ver se ele avalia logo o estrago pra liberar a gente. – disse Perez, indo para a sala, seguido por Prado.
A porta estava aberta e quando olhou, Perez viu que se tratava de um escritório com uma cozinha improvisada. Uma pia ao fundo terminava onde começava uma mesa de madeira, na qual talheres e copos dividiam espaço com algumas ferramentas. Na mesa ao centro, Roberto parecia dormir. A pequena tv ao lado esquerdo, próxima à janela que dava para o lado de fora, estava fora de sintonia.
- Roberto... – disse Perez, sem entrar – A gente tá meio com pressa, desculpa atrapalhar seu almoço...
O Rapaz permaneceu com a cabeça tombada sobre a mesa, sem se mover. Perez se aproximou.
- Roberto..? – disse, aproximando-se – Roberto?! – Deu quase um berro e sacudiu o homem, que permaneceu desacordado. Colocou a mão no seu pescoço, Prado ainda aguardando na porta, observando sem entender.
- Cara... – disse Perez, se voltando para a entrada – Ele parece morto...
De repente, sem que Perez esperasse ou mesmo percebesse, Roberto levantou-se num ímpeto e tentou acertá-lo com a faca. Prado deu um berro que atraiu a atenção de Perez, fazendo que ele conseguisse se esquivar parcialmente. A tv começou a chiar mais alto e a luz começou a falhar.Roberto parecia um zumbi.
- Roberto, cê tá louco?! – gritou Perez.
Mas o homem não o ouviu e tentou nova investida, também evitada por Perez. A investida, no entanto, fez com que ele desse as costas para Prado que o acertou com um chute forte nas costas, jogando-o para cima de algumas prateleiras ao lado de uma geladeira, que ficava embaixo da televisão.
- Esse cara deve tá chapado, melhor a gente chamar a polícia! – gritou Prado, fazendo sinal para que Perez saísse dali.
- Chapado de quê? De arroz e feijão? Ele tava almoçando, cara, não viaja!
- Eu não sei, mas ele tem uma faca e tá se levantando...
Prado não terminou a frase e Roberto se atirou novamente sobre Perez. Os dois se atracaram e caíram sobre a mesa, derrubando uma cadeira e um bebedouro de água perto da pia. O galão chocou-se violentamente com o chão e o líquido esparramou-se. A tv pendia sobre o suporte na parede enquanto os dois homens lutavam sob o olhar atônito de Prado. De repente, Perez conseguiu flexionar as pernas e apoiar os pés no peito de Roberto que estava sobre ele e jogá-lo para trás. Novamente o homem bateu nas prateleiras já quebradas e fez o suporte desprender-se da parede por completo, derrubando o aparelho.
A tv atingiu o chão com um estouro ensurdecedor. O contato com a água fez com que ambos levassem um choque inacreditável. Roberto recebeu a descarga sem gritar, enquanto Perez se debateu no chão aos berros. Momentos depois, tudo era silêncio.
Prado, que ainda assistia a tudo da entrada da porta, aproximou-se, tomando cuidado para não levar nenhum choque. Felizmente seu sapato era de couro legítimo e haveria de protegê-lo.
Olhou com atenção para Roberto e ele parecia torrado. Parecia bem morto dessa vez. Aproximou-se para olhar para Perez e foi surpreendido quando este abriu os olhos.
- Ow...!! – gritou Prado, dando dois passos atrás – Você tá bem? – perguntou, desconfiado.
- Sim... – respondeu Perez, fazendo uma careta de dor e se levantando – Acho que sim...
- Acho que agora a gente pode chamar a polícia...
- Sim... é melhor...
Prado tentou o celular novamente e dessa vez o aparelho funcionou, como se nunca tivesse falhado antes.
A polícia não demorou a chegar. Perez e Prado foram interrogados várias vezes. Tiveram de acompanhar os policiais até a delegacia. Quando foram liberados, já eram quase 4 da tarde.
- Eu te ligo na segunda... pra gente... hã... tentar resolver a parada do carro... – disse Prado, meio sem jeito.
- Tudo bem. A gente resolve isso na semana que vem... – concordou Perez, ainda um pouco atordoado, não se sabia se pelo choque ou pelo interrogatório.
Não muito tempo depois, quando chegou em casa, ainda sentia como se a corrente elétrica estivesse atravessando seu corpo. O que fora tudo isso? Tudo parecia tão surreal agora, mas ainda assim, ele sabia que era verdade. Ele estava lá. E os ferimentos no corpo não o deixavam esquecer que há poucas horas havia tido uma luta mortal com um conhecido. De qualquer maneira, estava cansado. Precisava tomar um banho, voltar ao trabalho se tivesse forças. Atravessou a oficina rapidamente, ganhou as escadas e quando chegou ao topo, sem que ele percebesse, a luz se acendeu atrás dele, no andar de baixo. No entanto, Perez não tomou conhecimento e, ignorando o estranho fato, foi para o banheiro, tomar um banho para tentar se recuperar um pouco.
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Continua na próxima semana...