terça-feira, 21 de agosto de 2007

Episódio 1 (Piloto): Demônios Interiores - parte 1




O sol havia se escondido no horizonte há horas, mas Perez continuava no trabalho. Sua pequena loja de informática tinha tido mais clientes do que o habitual ultimamente e, embora isso fosse uma ótima oportunidade de aumentar sua renda, lhe privava ainda mais da vida social já quase inexistente. Sua namorada o havia deixado há alguns meses, justamente por isso, por falta de tempo e atenção. Mas ele não estava reclamando. A garota estava se tornando uma chata mesmo e vivia querendo visitar os parentes, coisa que ele odiava profundamente. A não ser que fosse uma visita à sua velha mãe adotiva, que morava num retiro para idosos. Seu pai adotivo morrera há alguns anos e como ele não podia ficar por perto o tempo todo e cuidar dela, pagava-lhe um bom retiro. Talvez por isso o dinheiro nunca fosse suficiente para saldar suas contas e tinha de trabalhar tanto. Mas ele não reclamava. Não por isso. Fora adotado ainda bebê e criado como filho legítimo. Descobrira que era adotado quando fizera 18 anos. Junto com a revelação, seu pai lhe dissera que, como maior de idade, ele era responsável para tomar as próprias decisões e procurar saber quem eram seus pais, se assim quisesse. Sua resposta foi um sorriso agradecido: “Vocês são meus verdadeiros pais”. Dez anos se passaram desde então, seu pai falecera doente, com crises de loucura e sua mãe beirava à senilidade. Por isso necessitava de cuidados especiais que só o retiro podia fornecer. O dinheiro era bem gasto. Mesmo que, para pagar, ele tivesse de morar num sobrado de três cômodos, enquanto trabalhava no andar de baixo. A parte boa é que podia trabalhar até altas horas da noite.

Olhou para o relógio e eram quase 8 horas. Sua barriga roncava feito um cão selvagem e a garganta estava um pouco seca. Estalou os dedos, espreguiçou-se na bancada e deu um bocejo demorado. Era hora de pegar uma caneca grande de café e algo para comer. Levantou-se, subiu a escada de madeira que dava acesso ao segundo andar e foi até a cozinha. Embora morasse sozinho, o lugar era bastante arrumado. Isso, claro, porque ele tinha pouco tempo até para desarrumar as coisas. Esquentou um “hot pocket” no microondas e fez um café na cafeteira elétrica. Quando voltou ao andar inferior, algo parecia errado. Parou tão logo terminou o último degrau. À esquerda, o rádio sob a bancada estava fora de sintonia e tudo que ouvia era um chiado. Alguns metros à frente, a porta que dava acesso à loja estava entreaberta. Caminhou tentando não fazer muito barulho. Olhou para a loja. Tudo estava em paz, não havia nada e nem ninguém. A porta de ferro estava trancada. Os aparelhos estavam no lugar. Voltou-se e teve a impressão de ver um vulto terminando de subir a escada. Sentiu um calafrio percorrer toda sua espinha. Mas era racional. Sabia que estava sozinho. Ou talvez não. Talvez houvesse um ladrão escondido em sua casa. Recuou um passo, colocou o café e o lanche sobre o balcão da loja e apanhou o ferro de descer a porta. Voltou para a escada. Subiu silenciosamente e alerta. Já no andar superior, parou ao lado do sofá velho que ficava próximo à escada. Havia a porta da esquerda, que dava para o banheiro e o quarto, e a da direita, que ia para a cozinha. Foi primeiro à cozinha. Tudo estava em ordem. À sua direita, o fogão e a geladeira brancos pareciam fitá-lo, desconfiados. Uma ou outra gota de água caía da torneira na pia à esquerda. Aproximou-se dela, pressionou com mais força, para que parasse de gotejar. Sentiu vontade de beber água, sua boca estava seca. Mas não o fez. Apenas apanhou uma faca com a mão esquerda, mantendo a barra de ferro na direita. Se fosse um bandido, iria se arrepender amargamente por tentar roubar-lhe. Saiu pela porta e dirigiu-se ao quarto. No pequeno corredor, ainda olhou pela porta do banheiro à sua esquerda. Nada havia. Era pequeno demais para que alguém se escondesse. Continuou. A porta do quarto estava entreaberta e tudo era escuridão. Sentiu um pouco de medo, mas não era homem de recuar. Então prosseguiu, empurrou a porta sem muita força e acendeu a luz. O quarto clareou. O rack ao seu lado direito ostentava uma televisão de 29 polegadas, gostava de assistir nas horas vagas. O guarda-roupa ao fundo o fez lembrar da animação Shrek, sabe-se lá por quê. A cama, desarrumada como sempre, podia esconder um meliante embaixo. Com uma certa distância, depois de verificar que nada havia atrás da porta, ajoelhou-se. Projetou o olhar para baixo da cama e levou um susto: seu telefone tocara. A quebra total do silêncio sepulcral o fizera derrubar a barra de metal no chão, fazendo um barulho ensurdecedor. Houvesse ali algum bandido, estaria rindo agora. Atendeu, ainda com o coração acelerado.

- Sr. Perez? É do Retiro Paraíso. Sua mãe não está muito bem, andou delirando e tivemos de sedá-la. O senhor pediu para avisá-lo caso ela tivesse uma recaída. – disse uma voz feminina, doce, mas formal.

- Sim, obrigado. Estou indo praí. Até logo.

Esse era um dos motivos de pagar tanto para que abrigassem sua mãe. Poder visitá-la a qualquer hora que quisesse. E essa era uma dessas horas.

*****

Quando os ponteiros do relógio apontaram 8 horas, algumas pessoas na mesa de Prado já estavam alegres pelo efeito da bebida. Mas o rapaz, considerado um jovem prodígio pelo sucesso com as pessoas e rápida ascensão nos negócios, ainda nem havia começado. Sua habilidade em ingerir bebidas também era lendária entre os amigos. “Você não tem fígado, tem carburador”, diziam os companheiros. Mas ele sentia que tinha o direito. Tinha sido um dia difícil e cansativo no trabalho. Ele era gerente de uma rede bancária no estado. Geralmente ficava apenas na agência próxima a que costumava fazer o “happy hour” com os amigos, mas de vez em quando tinha de resolver problemas que os gerentes regionais não eram capazes. E como parecia fácil pra ele, tirar soluções da cartola e sanar os problemas mais absurdos. Por isso era tão querido e admirado. Por isso era, também, deveras, tão invejado. Mas gostava disso. Sabia que a inveja não o atingia. Sabia que era pré-destinado pra isso e embora tivesse aversão aos livros de auto-ajuda, adorava indicá-los aos que almejavam ser como ele. Afinal, ele estava ali para ganhar, não para ser guru de ninguém. Podiam admirá-lo, podiam invejá-lo, bajulá-lo, mas ser igual a ele não, isso ninguém seria capaz e ele jamais permitiria. Mas por hora, o jeito era aproveitar a noite. Os bajuladores pagavam a rodada e ele bebia de graça. As moças bonitas esfregavam “acidentalmente” a perna na sua, sonhando com uma promoção e os admiradores tentavam acompanhá-lo e imitá-lo.

Era uma sexta-feira e a pequena lanchonete onde bebiam não estava cheia. Ainda era cedo. Logo o movimento aumentaria. Quando essa hora chegasse, ele ainda teria cacife para beber muito mais e sabia que poucos na mesa teriam como acompanhá-lo. Sim, a lenda deveria ser mantida. Riu sozinho enquanto tomava outro gole de whisky. Sentiu que a natureza o chamava. Sim, tinha de ir ao banheiro.

- Alguém quer chacoalhar pra mim? – brincou.

Todos riram e ele saiu antes que algum bajulador bêbado aceitasse o convite. Caminhou até o banheiro, passando por algumas mesas vazias ou com algum casal de namorados. O banheiro ficava à sua esquerda, logo depois que o balcão acabava. Uma das moças o observava com olhar lascivo. Já havia saído com ela algumas vezes. No fundo, achava-a atraente, mas jamais poderia ele namorar uma bargirl. Mesmo que ela fosse linda e parecesse gostar dele sinceramente. Olhou para ela com um sorriso malicioso, deu uma piscada e entrou no banheiro em seguida. Depois de terminar de esvaziar sua bexiga, enquanto lavava as mãos, seu celular tocou. Secou-as rapidamente e consultou o pequeno visor antes de atender. Não havia número de origem. Desconfiado, atendeu. Não havia voz, apenas um chiado distante. Repetiu “alô” várias vezes. Desligou, achando que se alguém quisesse falar com ele, que ligasse de um aparelho decente e que funcionasse. Aproximou-se da porta e ouviu uma descarga. Tentou virar a maçaneta, mas ela não se moveu. Puxou, mas a porta parecia trancada.

- Não acredito... parece que estamos trancados, companheiro... – disse em voz alta, para o ocupante do terceiro banheiro, o que dera a descarga há pouco. Mas não houve resposta.

Olhou para as três portas alinhadas das três pequenas repartições separadas apenas por uma parede de menos de dois metros. Ele acabara de usar a primeira. A segunda tinha a porta aberta, o outro cara só poderia estar na terceira, pois ao fundo, nos mictórios, não havia ninguém. Aproximou-se e empurrou a porta: “Ei, cara, estamos tranc...”. Não terminou a frase, pois viu que falava sozinho. A água girava no vaso, o que mostrava que a descarga havia sido acionada há pouco. O celular tocou de novo. Atendeu, mas não havia voz. Outra vez, apenas chiados. Ruídos identificáveis. Alguns pareciam lamentos de dor e agonia. Deu alguns passos para trás, em direção à porta, com olhos arregalados. Encostou-se nela, tentou a porta novamente. Trancada. Tentou com mais força, mas a porta não abria. Não conseguia tirar os olhos da terceira repartição. Tinha a impressão de que a qualquer momento alguém sairia de lá. De repente, pendeu para trás. A porta abrira. Um sujeito de barba rala puxara a porta e entrara, passando por ele. Engoliu em seco e recuou alguns passos, parando pensativo perto do balcão. Com certeza não havia acontecido nada de mais, fora só um susto bobo. Mas seu coração estava um pouco acelerado. Sentiu uma mão no ombro. Era Graziela, a bargirl.

- Que foi, saiu com uma cara de assustado do banheiro... – disse, se aproximando apoiando-se sobre os cotovelos no balcão.

- Não foi nada... – respondeu, ainda hesitante – é que estava esperando você aparecer por lá.

A moça deu um riso sarcástico de reprovação, um tapinha leve em seu braço: “Você não presta mesmo”, disse, mas num tom nada sério.

Prado recuperou seu autocontrole e voltou para junto dos amigos. Ainda havia muita bebida esperando por ele.

*****

Quando parou seu carro no estacionamento do Retiro Paraíso, Perez já havia esquecido o suspense que passara há pouco em sua casa. Estava preocupado com sua mãe que não andava bem e não era de hoje. Caminhou rapidamente pelo estacionamento de pedra, chegando a um caminho central de cimento que levava até a entrada do prédio. Empurrou uma das portas de vidro e entrou. As cadeiras pretas acolchoadas do lado direito estavam vazias e a recepcionista prestava atenção nos últimos momentos da novela que passava na tv ao alto, ao lado do balcão.

- Oi. Será que eu posso ver a minha mãe? – perguntou ele, um pouco esbaforido.

- Olá, senhor Perez, tudo bem? – pelas visitas constantes, ele já era conhecido – Pode sim, ela está no quarto 29, no terceiro andar.

Agradeceu com um sorriso e saiu andando com passos firmes. Passou pelo balcão, ganhou o corredor e pressionou o botão para chamar um dos dois elevadores, que chegou rapidamente. Enquanto subia até o terceiro andar, deteve sua atenção à música ambiente. Era uma música da Alanis Morissette, uma de suas preferidas, aliás. “Estou ficando velho”, pensou, “minhas músicas preferidas já estão tocando em elevadores...”. Sorriu um pouco, tentando relaxar a tensão e a preocupação. Logo que chegou ao corredor, passou por três quartos e enfim encontrou o 29. A porta estava aberta, sua mãe parecia dormir. Entrou de súbito e só depois percebeu a enfermeira sentada no canto esquerdo. A cama ficava bem em frente à porta, embora de lado.

- Ela está bem agora, nós a medicamos. – disse a enfermeira, levantando-se para cumprimentá-lo.

- Olá Ana. – disse ele – posso ficar com ela até que acorde?

- Sim, Perez, claro. – sorriu a enfermeira, que já possuía certa intimidade com o rapaz. – Eu vou estar na minha sala. Qualquer coisa, é só tocar a campainha, que eu ou alguma auxiliar vem te atender.

- Obrigado Ana. – sorriu.

Logo que a enfermeira saiu, ele sentou-se do outro lado da cama, perto da janela.

Ligou a tv, mas deixou o volume tão baixo que mal podia ouvir. Pouco tempo depois, acabou pegando no sono. De repente, foi acordado pela mão de sua mãe. Olhou para ela e tinha os olhos um pouco arregalados.

- Cuidado filho, seu pai pediu pra te avisar... pra tomar cuidado! – exaltou-se.

- Calma mãe, - disse ele, pegando em sua mão – tá tudo bem.

A velha senhora parecia à beira do desespero. Ele apertou a campainha, mas não obteve resposta. A tv estava fora do ar. Foi até a porta e o corredor estava vazio. Correu até a sala de Ana, temendo deixar sua mãe sozinha. Logo que chamou a enfermeira ambos voltaram rápido. A tv estava normal, sua mãe dormia tranquilamente e a campainha funcionava perfeitamente. Muito estranho. De repente sua mãe abrira os olhos, mas sem o desespero. Estava lúcida, conseguia até conversar. Mas estava sonolenta. Os remédios a fazendo bocejar. Enfim, Ana convenceu-o a voltar para casa, sua mãe estava em boas mãos e, com certeza, dormiria profundamente pelas próximas horas sob efeito dos remédios.

Era quase meia-noite. Perez saiu dirigindo um pouco sonolento. Sua casa não era longe indo de carro e sem trânsito. O trabalho atrasaria, pois chegaria e iria direto para a cama. Ou não conseguiria acordar na manhã seguinte para trabalhar. Rogério, seu funcionário, podia se virar sozinho na loja na manhã de sábado, mas ele tinha de continuar os consertos.

Não estava muito longe de casa quando o rádio saiu do ar. Tentou sintonizar outra estação, o barulho do rádio o ajudava a manter-se acordado, mas foi em vão. De repente, num piscar de olhos, literalmente, sentiu perder o controle do carro. Era como se forças invisíveis arrancassem o volante de suas mãos e o virasse para a esquerda. Um carro preto, importado, estava imbicado para a rua, saindo de uma vaga próxima à calçada. Não teve tempo de se desviar e o choque foi inevitável. As pessoas no bar levantaram-se para ver, e ele desceu do carro preocupado. Se vendesse seu fiat uno não seria suficiente para pagar o conserto do carro do “bacana”. Do carro preto desceu um homem com quase trinta anos, cabelos curtos e bem aparados, de roupa social, mas sem gravata. As mangas da camisa dobradas. Os olhos verdes penetrantes fixos no amassado do carro. Olhou para Perez. Olhou novamente para o amassado.

- E agora...? Como é que você vai pagar isso? – perguntou, quase furioso.

- Você deve ter seguro. Vamos fazer um B.O. e eu pago a franquia.

- Eu mereço... não vamos chamar a polícia coisa nenhuma! Você bateu, você se vira pra pagar!

- Pera lá! Você imbicou o carro na minha frente! A culpa não foi minha! – defendeu-se Perez, notando que o rapaz estava um pouco embriagado e por isso se recusava a acionar a polícia.

O rapaz deu um suspiro sarcástico e aproximou-se de Perez.

- Você quer resolver isso de outra forma? – disse, projetando-se sobre ele.

- Você é que sabe. – respondeu Perez, sem recuar e cruzando os braços sob o peito.

Nesse momento, Graziela saiu do bar, agarrou o rapaz pelo braço.

- Pára com isso, Prado! Você está bêbado! – arrastou-o, tentando fazê-lo voltar ao bar.

- Prado! – Perez aproximou-se dele estendendo um cartão – Amanhã, quando estiver melhor, me procura pra gente resolver isso. Acho que com calma, poderemos chegar a um acordo.

- Claro... Perez... – disse Prado, lendo o cartão, irônico – a gente se vê amanhã.

Perez voltou ao seu carro. O estrago não era tão grande. E apesar do dono do outro carro parecer um idiota completo, não era de seu feitio deixar assuntos inacabados. Com certeza, quando estivesse são, o rapaz seria mais razoável.

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Continua no capítulo II...
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Baixe o tema do Capítulo Devil Inside de Utada Hikaru: http://rapidshare.com/files/50468042/Utada_Hikaru_-_Devil_Inside__Original_Version_.mp3,

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