quinta-feira, 13 de setembro de 2007

Episódio 3: Ritual


Perez já havia esquecido os acontecimentos bizarros do último fim de semana. O trabalho lhe ocupava a mente e o distraía. Nem se lembrara de comprar o tal jornal de Miguel para ver a matéria. Mas, a princípio, ninguém o acusara. Tinha o tal de Prado como testemunha e as evidências indicavam que ele não era o agressor e sim, o agredido. Restava esperar, teria de depor em alguns dias, mas, até lá, só tinha de concentrar-se no trabalho e na mãe doente. Hoje, por sinal, seria uma noite longa. O Retiro Paraíso havia ligado, sua mãe havia tido uma crise e estava sedada. Repetia que queria vê-lo, que precisava falar-lhe. Estava preocupado e ansioso para vê-la, mas de nada adiantaria ir agora, pois os medicamentos a faziam dormir por horas. Sendo assim, nada mais útil do que terminar seus afazeres e só depois, assim que anoitecesse, ir até lá. Felizmente, do trabalho não podia reclamar, já que as encomendas se sucediam. Pensava até em contratar mais alguém para ajudar Rogério no atendimento, mas, pensando melhor, o rapaz era bem competente e merecia um aumento, isso sim. Bom, faria isso no próximo mês.

*****

Há alguns dias Prado tinha de acordar mais de uma hora antes do habitual. Seu carro estava no conserto e tinha de ir para o trabalho de metrô. Com a quebra do carro percebera também que não possuía amigos na empresa, apenas interesseiros, pois nenhum deles fora capaz de lhe oferecer uma carona. Bom, ele se lembraria disso na hora de promover alguém, ah, com certeza que sim. E, só por via das dúvidas, iria a uma mãe de santo, feiticeira, macumbeira ou qualquer coisa do tipo, pra saber se tinham lhe posto um olho gordo ou era só azar mesmo. Mas não faria isso de metrô e nem pagaria um táxi. Não, recorreria às opções que tinha. Pegou o pequeno celular e procurou um nome na agenda. Selecionou o de Graziela e ligou.

- Oi Grá, tudo bem?

- Oi Prado. Tudo bem. Acordei há pouco e acabei de tomar um banho. – respondeu a garota, visivelmente animada com a ligação.

- Preciso de uma ajuda sua, preciso saber onde tem uma rezadeira, ou qualquer coisa do tipo. Sei que você conhece bem essas coisas, então, se puder me ajudar.

- Ah sim, claro que posso. Tem uma que não fica muito longe do banco. Se quiser, eu posso ir com você até ela.

- Quero sim... será que tem como você me pegar aqui no banco? Eu tô sem carro...

- Ah, claro, pode deixar! Passo aí em meia-hora, pode ser?

- Tá ótimo Grá, obrigado. Um beijo.

Mal esperou pela resposta de Graziela, desligou o celular. Recostou-se à cadeira confortável e confirmou o horário na tela fina de LCD do computador à sua direita na mesa. Faltava pouco mais de 20 minutos para que pudesse ir embora. Isso quer dizer que ainda tinha tempo para um café na cozinha. Saiu da sala satisfeito, conseguira uma carona para casa. Passando pela mesa de Cristiane, convidou a secretária para acompanhá-lo no café. A moça deu de ombros e aceitou, aumentando a satisfação de Prado. Quando a contratou, há pouco menos de um ano, ela foi selecionada entre uma dezena de candidatas por seu carisma, simpatia, pelas belas pernas e enormes seios, mas, até então, ele não havia tido muita sorte em suas investidas e ela nunca aceitara um convite para sair, já que tinha um namorado. Mas nem por isso Prado havia desistido. Talvez fosse só uma questão de tempo, quem sabe? Bom, tudo bem, por hora, se contentaria com o café, afinal, uma bela companhia no café era bem melhor do que o bando de bajuladores que costumava rodeá-lo.

*****

Perez fora acordado por Ana, a enfermeira do Retiro Paraíso. Ele estava com sua mãe no quarto desde às 8 da noite e, no momento, cochilava tranquilamente na cadeira ao lado da cama. A enfermeira o tirara da soneca porque era hora de sua mãe ser medicada. A velha senhora também dormia, embora não tão tranquilamente quanto o filho, já que tinha a respiração pesada e barulhenta.

Enquanto Perez se levantava esfregando os olhos, uma auxiliar de enfermagem preparava a injeção de sua mãe. Perez afastou-se, aproximando-se da porta e de Ana, que o convidou para tomar um café na cozinha, enquanto a auxiliar ministrava o medicamento. Sonolento, Perez aceitou. Saíram pelo corredor e desceram de elevador até o primeiro andar. Viraram à direita, indo na direção contrária à recepção e, atravessando uma porta que tinha um cartaz com os dizeres “somente pessoal autorizado”, chegaram até a cozinha. O cômodo não era muito grande, na verdade, era um pouco apertado. Havia uma pia à esquerda e um galão de água descansava sobre um suporte. Um armário grande ao fundo e uma bancada à esquerda deixavam pouco espaço para a mesa de centro, com apenas seis cadeiras. Na bancada, havia um microondas e um mini-fogão de duas bocas. Mas Perez não prestou muita atenção a esses detalhes e sentou-se numa das cadeiras, ficando de frente para a porta, enquanto Ana dirigiu-se à pia. Enquanto lavava as mãos, perguntou se Perez queria café ou preferia chá. O rapaz preferiu café, pensando que isso o ajudaria a vencer o sono. Ana pegou a garrafa sobre a mesa notou que estava quase vazia.

- Hum... – disse ela, pensativa – Vou até a cozinha pegar café feito agora e já volto. - Saiu em seguida.

Perez sabia que ela se referia à cozinha industrial, onde eram preparadas as refeições dos internos. Ele conhecia as dependências do prédio. Sabia até que o lugar adequado para tomar o tal café seria no refeitório, mas já algumas vezes Ana o convidara para um café na cozinha pessoal dos funcionários e a companhia dela sempre era tão agradável que ele acabara se acostumando.

Não demorou muito e a jovem enfermeira retornou com a garrafa cheia de café. Serviu um copo para cada, sentou-se do outro lado da mesa e começaram a conversar. De princípio, a conversa era a mais formal possível. Falaram sobre o estado da mãe de Perez, sobre os medicamentos e sobre outras coisas sem muita importância. Até que Ana decidiu mudar o rumo da conversa, partindo para uma conversa mais informal e pessoal.

- E então Perez, como anda a vida? Já tá pensando no casamento? – perguntou, tentando esboçar alguma empolgação.

Perez riu, um riso discreto, de desdém.

- Casamento? Claro, só falta a noiva... – gozou.

- Ué, mas e a Cláudia, sua namorada? – perguntou, surpresa.

- Ex-namorada, você quer dizer... a gente terminou, já tá com mais de um mês.

- Ah... – disse Ana, visivelmente constrangida pela falta de tato na pergunta.

- É, ela não tava acostumada com meu jeito... hã... meio “selvagem” de ser. Queria ir em churrasco todo dia com a turma da faculdade dela, e queria que eu fosse também. Não dá. E sem contar que não tenho hora pra vir aqui ver minha mãe e isso a estava incomodando, então, foi melhor terminar.

- Ah... e você tá bem? Quer dizer, desculpa ser intrometida, só...

- Não, não, – interrompeu Perez – tudo bem, não tenho problema pra falar disso. Mas eu tô bem sim.

- Então tá. – concordou Ana, com um sorriso afável, baixando a cabeça um pouco para sentir o cheiro do café antes de tomar mais um gole.

Perez só então parou para reparar na moça. Sabia que ela era jovem, tinha apenas 25 anos. Possuía cabelos longos e pretos, sempre presos atrás da cabeça, formando um rabo. Seus olhos pretos eram grandes e expressivos, pareciam sempre alerta. A boca tinha lábios finos e desenho delicado, assim como o resto da face. Ele a vira poucas vezes sem o jaleco de trabalho, mas fora suficiente para ver que possuía um belo corpo, talvez um pouco magra, ou, talvez isso fosse só a impressão que ficara devido a só vê-la assim de cabelo solto. De qualquer forma, era uma bela garota. E sua companhia estava sendo sempre tão agradável. Decidiu prosseguir com o papo.

- E você, Ana, vai casar? – perguntou, tentando parecer sério.

- Rá! – disse ela – Claro, assim que eu encontrar um vampiro... afinal, só vivo de noite! – riu.

- Tá dizendo que não tem namorado? – insistiu Perez, em tom de sarcasmo.

- Não. O último que tive me ligou bêbado numa madrugada dizendo que tava saindo de uma balada direto pro motel com uma menina que tinha conhecido.

- Não...! O cara fez isso? – espantou-se.

- Pois é... e no dia seguinte me acordou às duas da tarde com cara de cachorro sem dono, pedindo desculpa.

- E você desculpou? – mais sarcasmo.

- Claro... – disse ela, também em tom de sarcasmo – Falei pra ele que ia pensar e ligava de volta. Ele tá esperando faz quatro meses... hahaha! – riu, enfim.

Perez riu também. Depois, ficaram em silêncio e foi Perez quem o quebrou.

- Bom, a gente podia... – foi interrompido.

- Perez, dá licença, mas sua mãe acordou e tá chamando seu nome.

A expressão alegre e despreocupada desapareceu do rosto do rapaz, assim como da enfermeira, e ambos foram até o terceiro andar, ao quarto da mãe dele. A velha senhora parecia lúcida. No entanto, assim que o viu, foi tomada por pânico. Seus olhos estavam arregalados e lágrimas começaram a escorrer. Perez abraçou-a.

- Calma mãe, tá tudo bem... – disse ele, contendo o choro.

- Meu filho... – gaguejou a mulher, mal conseguindo falar – eu vi seu pai... ele falou pra você tomar cuidado...

- Tá mãe, pode deixar... – concordou, tentando acalmá-la.

- Ele me disse... – choramingou a velha – que o ritual foi feito... e agora o mal está solto de novo... que eles virão atrás de você... – seu olhar era puro desespero.

Perez abraçou-a mais forte, sem prestar atenção ao que ela dizia. Aos poucos, ainda nos braços do filho, ela foi se acalmando. Cessou o choro e voltou a deitar-se. As auxiliares mediram sua pressão, não estava alterada. Mas ela estava novamente sonolenta, efeito dos remédios. Perez deu a volta na cama e sentou-se ao seu lado, segurando fortemente sua mão. Ana permaneceu um pouco à porta e, logo, dizendo que estaria em sua sala, se retirou. Não demorou muito para que a senhora voltasse a dormir e, por um momento, o jovem sentiu-se tentando a continuar a conversa com Ana. Mas uma coisa que a mãe dissera não lhe saía da cabeça: “o ritual foi feito. O mal está solto. Eles virão atrás de você”. O que queria dizer? Teria sido apenas delírio da mente já perturbada de sua mãe? É provável que sim, mas, mesmo assim, graças aos acontecimentos estranhos dos últimos dias, isso o estava incomodando.

*****

Graziela, como sempre, era pontual. Prado não gostava muito de andar no seu Ford Ka 2001, mas, embora não fosse possível compará-lo com seu Corola 2007, era muito melhor e mais confortável do que andar de metrô. Por isso mesmo, tentou ser o mais simpático e agradável possível enquanto se dirigiam à tal macumbeira que Graziela dissera conhecer. Felizmente, chegaram logo, a fome começava a incomodar Prado. A casa parecia normal. Tinha um portão baixo e um muro que terminava numa grade que não chegava a dois metros de altura. Do lado de dentro, um jardim bem cuidado, atravessado por um caminho cimentado que levava à casa, que tinha uma pequena área coberta e porta de madeira escura. Graziela tocou a campainha pela segunda vez e uma senhora com uma saia branca e blusa vermelha, com um lenço na cabeça, atendeu. Pediu que entrassem e dirigiu-se aos fundos da casa, indo pelo lado de fora. Graziela e Prado seguiram-na, passando pelo jardim e acompanhando o caminho de flores variadas. Chegaram a um cômodo de fundos e, assim que entraram, a mulher pediu que fechassem a porta.

- Olá, “mãe Doraci”, esse é o Prado, que te falei. – disse Graziela, em baixo tom de voz.

- Você falou de mim pra ela? – perguntou o rapaz, num sussurro.

- Claro, eu liguei pra marcar consulta. Acha que é assim, chegar e ir passando? Ainda bem que ela tinha horário vago. – sussurrou de volta a garota.

- Você, Prado, senta aqui. Graziela, você pode esperar aí no sofá.

Desconfiado, Prado sentou-se numa cadeira, de frente para uma mesa de toalha branca, com alguns badulaques em cima. Um pouco atrás, Graziela ficou aguardando, sentada num sofá velho de dois lugares. A sala tinha pouca luz, a parede era pintada com uma tinta escura e a única janela era coberta por uma espessa cortina. Havia algumas estantes com coisas estranhas, objetos “místicos”, ele imaginou.

- Então Prado, você quer saber se alguém fez feitiço pra você? – perguntou a mulher, sentando-se à sua frente.

- É... – respondeu ele, sem muita convicção. No fundo, sentia-se ridículo se submetendo a esse tipo de situação.

A mulher, que devia ter quase cinqüenta anos, poucos cabelos brancos num rosto cansado, começou a jogar algumas pedras, búzios talvez, ele não sabia ao certo.

- Hum... – disse a mulher enfim, depois de jogar várias vezes as peças – tô vendo que tem uma loira no seu futuro...

Prado olhou de soslaio para Graziela, fez cara de desdém, afinal, a garota era morena.

- Vai te causar problemas... mas vai piorar... – continuou a vidente.

Imaginou quem seria a tal loira. Marisa era morena. Cristiane também. Não se lembrava de nenhuma que pudesse fazer-lhe algo de ruim.

- Aqui eu vejo... – prosseguiu – um ritual! – exclamou – Me deixa ver sua mão! – disse, agitada.

Prado obedeceu e a mulher examinou sua mão demoradamente. Olhou em seguida pra ele.

- Você... tem algo estranho em você... – divagou – Você não é quem diz ser... mas você ainda não sabe quem é! E o mal está ao seu lado!

Prado tirou a mão de súbito das mãos da mulher.

- Tá, tá, acho que já chega, né? – disse, um pouco irritado e sem paciência.

Nesse momento, ouviram um ruído surdo dentro do pequeno quarto, que parecia com o de alguém batendo contra a parede.

Prado não se deteve. Tirou uma nota de cinqüenta da carteira e colocou sobre a mesa. A mulher olhava desconfiada.

- Espere! – disse ela – Leve esse amuleto. Ele vai te dar proteção. – concluiu, pegando numa gaveta da mesa uma pequena pedra pintada com verniz e com inscrições inteligíveis, presa por um cordão preto. Prado apanhou-a e virou-se para sair, mas foi seguro pela mulher.

- O amuleto custa 20... – disse, sem se alterar.

Prado sorriu, com desdém. Ele, que estava acostumado a levar as pessoas na conversa estava sendo enganado pela tal “mãe Doraci”. Pegou os vinte reais e pagou sem reclamar, para que pudesse sair logo dali, estava cansado, com fome e irritado. Não fosse Graziela a dona do carro, ele a deixaria aí.

Puxou a porta e a maçaneta estava travada.

- Aí, dona cigana... – brincou – a porta tá trancada.

- Não está não, é só puxar, meu filho. – respondeu Doraci, sem se importar com a brincadeira.

- Não, tá fechada...

Mal terminou a frase e novo barulho na parede foi ouvido, dessa vez, bem mais alto. Alguns objetos nas estantes vieram ao chão, como se alguém estivesse balançando-as. Doraci começou a olhar para os lados, assustada, e berrou.

- Quem tá aí? Manifeste-se!

Prado olhou para Graziela, com um olhar sarcástico. Mas no fundo ele estava apavorado, pois não era a primeira vez que isso acontecia. Graziela levantou-se, também assustada, mas sem disfarçar. De repente, a mesa tremeu e moveu-se com violência, atingindo Doraci. Ela recuou, disse dois ou três palavrões e tentou entoar uma oração pagã. Então Prado puxou a porta com mais força e conseguiu abri-la e, tão rápido como começou, a manifestação parou.

O rapaz pegou a moça, que ainda estava boquiaberta, pelo braço e puxou-a, sem ao menos se despedir de mãe Doraci.

- Vamos embora! – disse, guiando-a ao carro.

Quando saíram dali, Prado tentou parecer natural e despreocupado e convidou Graziela para jantar em seu apartamento. Mais do que uma forma de agradecimento, não queria ficar sozinho e, pra falar a verdade, também não queria que Graziela ficasse sozinha. Imaginou que isso podia se repetir e queria protegê-la, embora não soubesse bem como. Na melhor das hipóteses, teria a ótima companhia de uma excelente cozinheira para a refeição, depois dela preparar o jantar pra ele, claro.

Música desse episódio: Ritual - Ash. Baixe:
http://rapidshare.com/files/55721215/Ash_-_ritual.mp3.html

quinta-feira, 6 de setembro de 2007

Episódio 2: O que os Olhos Não Vêem



Perez acordou de repente. Mal se lembrava de ter deitado na noite anterior. Espreguiçou-se demoradamente e com um gemido de satisfação, só então percebendo que a luz estava acesa. Seraáque estava tão cansado quando se deitou que esquecera até de apagar a luz? Talvez. Apanhou o celular ao lado da cama e constatou no pequeno visor que já era de manhã. Seus olhos estavam cansados, mas precisava levantar. Tinha trabalho a fazer e, além disso, seu carro ainda estava amassado. Sentou-se na cama, esfregou os olhos mais uma vez, e se pôs em pé. Foi até a janela e abriu-a, permitindo que o sol ainda tímido da manhã invadisse o quarto, dando-lhe boas vindas. Bocejou mais uma vez. Tirou a camisa velha e sem mangas com a qual dormia e foi ao banheiro. Demorou poucos minutos para lavar o rosto e escovar os dentes. Voltou ao quarto e trocou de roupa. Vestiu uma camisa preta com apenas três botões na gola, uma calça jeans já um pouco velha e sapatos marrons.

Na cozinha, pegou o leite na geladeira à direita e o despejou numa caneca. Misturou com Nescafé em seguida e levou ao microondas. Programou o tempo do aquecimento, mas o aparelho simplesmente não ligava. Verificou o fio de energia, tudo parecia normal. A luz da cozinha acendeu normalmente quando ele testou o interruptor, mas o microondas continuava apagado. Deu um suspiro de desânimo e o eletrodoméstico ligou, como se por mágica. Sorriu. Esquentou seu café e desceu para o trabalho, logo Rogério chegaria para abrir a loja. Apesar de todos os problemas e da morte extremamente suspeita do funileiro, do qual, inclusive, ele podia ser apontado como suspeito; a vida continuava.

*****

Pela primeira vez em muito tempo, Prado estava atrasado para o trabalho. Odiava isso. Ser pontual e eficiente eram suas principais qualidades, não podia permitir que falhas assim acontecessem. De qualquer forma, logo chegou ao trabalho e parecia que o mundo estava acabando. Duas filiais do banco estavam com grandes problemas. Ele teria de se locomover até lá para resolver tudo. Assim que chegou à sua sala, sua secretária o abarrotou com recados dos gerentes das filiais. O telefone tocava insistentemente. Nem se deu ao trabalho de atender. Sentou-se em sua confortável cadeira de couro e pediu que sua secretária cuidasse de tudo, ele estava de saída. Bela maneira de se começar uma segunda-feira. Agora teria de viajar com o carro amassado. Como diria Garfield, “Odeio segundas-feiras”, sorriu Prado, ao sair pela porta do banco e avançar até o estacionamento.

*****

Era quase hora do almoço quando Rogério interrompeu Perez na oficina nos fundos da loja.

- Perez, tem um cara te procurando... disse que queria falar com você. – disse Rogério, duvidoso.

- Tá, já vou atender. – respondeu Perez, sem dar muita importância.

Pouco depois, quando chegou à loja, encontrou um rapaz louro e bem vestido, com olhos fundos e penetrantes, aguardando com as mãos no bolso e um meio sorriso.

- Pois não, senhor, queria falar comigo? – indagou Perez, imaginando ser algum cliente, talvez insatisfeito.

- Olá sr. Perez. Meu nome é Miguel, sou repórter. Será que podemos falar sobre o funileiro que morreu no sábado? – disse o estranho, sorrindo e estendendo a mão num cumprimento.

Perez retribuiu ao cumprimento, mas hesitou por um momento. Um repórter? Será que era mesmo suspeito de assassinato? Realmente ele havia lutado com Roberto, mas a morte havia sido um acidente, tanto que ele próprio havia sido eletrocutado e só estava vivo por puro milagre.

- Tudo bem, Miguel, - respondeu enfim – venha até a oficina e a gente conversa.

Perez voltou-se e caminhou de volta para a oficina, seguido por Miguel. Sentaram-se, Perez no lugar de sempre, junto à bancada à direita e com dois micros desmontados à sua frente, e Miguel, numa cadeira pouco confortável próximo à porta.

- Então Perez, pode me dizer exatamente o que aconteceu naquela oficina? – indagou Miguel, sem delongas.

Perez olhou sério para seu interlocutor. Pensou por alguns instantes e em seguida começou a falar. Contou como ele e Prado esperavam para serem atendidos e foram atacados pelo funileiro, como os dois lutaram e acabaram tomando um forte choque que, para Roberto, foi mortal.

Miguel ouvia a tudo, sem interromper, anotando num pequeno bloco de notas, enquanto gravava a conversa num pequeno gravador. Parecia atento a tudo que Perez falava. Fez perguntas para entender melhor, andou pela oficina. Perguntou sobre a família, sobre os pais adotivos e até coisas aparentemente irrelevantes. Disse que acreditava na inocência de Perez, que uma matéria bem redigida poderia ajudá-lo a provar.

Enfim, depois de muita conversa, disse que era o suficiente. Colocou-se em pé e pediu para que Perez o acompanhasse à saída. No entanto, antes de sair pela porta da oficina, Miguel voltou-se rapidamente, para mais alguma questão que lhe ocorrera de última hora, mas o movimento fora tão brusco e repentino que sua caneta perfurara a barriga de Perez, provocando uma leve picada.

- Ow! – gritou Perez, de pronto.

- Desculpa Perez... fui desajeitado... e só queria agradecer pela entrevista.

- Tá, tudo bem... mas toma cuidado, essa sua caneta é bem afiada... – reclamou Perez.

Miguel finalmente se despediu e partiu. Perez esperou que ele saísse pela porta e voltou-se para Rogério, distraído do outro lado do balcão.

- Rogério, só vou trocar de camisa porque essa sujou de sangue um pouco e você pode ir almoçar.

- Ok, chefe! – sorriu o rapazote, em tom irônico.

*****

Prado já havia resolvido um dos problemas. Coisa simples para ele. Mas o gerente da filial 23 era novo e não estava habituado a lidar ainda com certas ocorrências. Mas o segundo problema parecia difícil. Bem mais difícil. Por isso mesmo ele ficara tão feliz ao solucioná-lo antes do almoço. O dia parecia estar melhorando, enfim.

Conseguiu parar num restaurante razoável a caminho da matriz. Já era um pouco tarde, passava das 13 horas, por isso, o local não estava tão lotado. Conseguiu uma boa vaga na sombra para o seu carro, afinal, o sol forte era de rachar. Teve o cuidado de tirar o dvd player, recém-adquirido, e guardar dentro do porta-luvas. Desceu e enquanto caminhava até o restaurante, pôde ouvir o apito do alarme sendo acionado pelo botão em seu chaveiro.

Já do lado de dentro, escolheu uma mesa próxima à tv, queria ver os esportes enquanto comia. Sentou-se e logo uma mulher de meia-idade veio atendê-lo. Apesar da aparência de cansaço, exibia um belo sorriso.

- Pois não senhor, já escolheu? – perguntou, amável.

- Sim, eu vou querer o prato do dia... mais uma coca zero em lata com um pouco de gelo e limão. – disse Prado, sem prestar muita atenção nela, o programa de esportes estava interessante.

Para não atrapalhar, a mulher fez um aceno de cabeça e saiu para providenciar o seu pedido.

Os minutos passaram rápido, pois, apesar de faminto, não estava com pressa. Já havia resolvido dois problemões na parte da manhã, poderia pegar leve na parte da tarde então. E tudo parecia calma, se houvesse alguma emergência e precisassem dele, alguém ligaria em seu celular. Dessa forma, só restava aproveitar a refeição que acabara de chegar. O refrigerante havia sido servido antes, então, já estava na metade. “O copo está meio vazio, ou está meio cheio?”, pensou, rindo sozinho, enquanto começava a comer.

Vinte minutos depois, estava satisfeito. Pena o restaurante ser tão longe do local em que trabalhava, pois a comida era excelente. Aproveitou que o programa de esportes já tinha acabado e levantou-se para ir ao banheiro.

Entrou e a porta fechou-se atrás dele. Esvaziou sua bexiga e, enquanto lavava as mãos, fez algumas caretas frente ao espelho, para ver se havia algum resquício indesejável de comida por entre os dentes. Felizmente seu sorriso branco estava indefectível. Sorriu e foi para a porta. Puxou e a maçaneta não se moveu. Insistiu e, apesar dela virar, a porta não abriu. Ouviu o som da descarga. Lembrou-se do outro dia, no banheiro da lanchonete. “De novo não...”, pensou. De repente, todas as descargas foram acionadas simultaneamente. O mictório ao fundo começou a escorrer, como se o registro tivesse sido aberto e, uma a uma, as torneiras começaram a despejar água.

- Sem chance... isso só pode ser brincadeira... – disse Prado, para si mesmo, tentando entender o que acontecia.

Largou a maçaneta da porta. Caminhou lentamente, empurrou a porta da primeira repartição do banheiro. Estava vazia. Mas a água do vaso descia fortemente, indicando que a descarga estava acionada. Repetiu o mesmo com as outra cinco repartições e a situação em cada uma era a mesma. Tentou se acalmar e recuou. Experimentou a torneira e estava fechada. Ainda assim, a água saía como se estivesse aberta ao máximo. Desistiu de tentar entender o que estava acontecendo. Correu até a porta e bateu nela com a mão fechada, tentando chamar a atenção de alguém do lado de fora. Mas parecia não haver ninguém. Ele sabia que havia, mas ninguém prestava atenção o suficiente para ouvi-lo. De repente, o barulho das descargas ficou mais forte e notou que a água começava a escorrer pelo chão. Curioso, aproximou-se novamente da primeira repartição. O “tipt-tapt” do seu sapato contra o chão molhado mal podia ser ouvido. Deu um passo e parou à porta da repartição. Parecia que a água queria passar-lhe uma mensagem... que besteira, como poderia pensar em algo assim? Com certeza, era apenas sua cabeça pregando-lhe uma peça e o fato de quase poder enxergar um rosto (pelo menos dois olhos e uma boca) na água que finalmente se acalmava no vaso, era apenas pelo iminente pânico que sentia. Então, projetou o tronco para frente para olhar melhor para a face que se formava no vaso e foi surpreendido. Um jato de água atingiu-o direto no rosto, de súbito. Tentou dar um passo atrás, mas escorregou e atingiu o chão molhado, batendo com as costas no piso. Gemeu de dor, e quase podia ouvir uma risada. Levantou-se. A água começava a vazar para fora do banheiro, ouviu batidas na porta e gritos de “a porta emperrou” vindos do restaurante. Passou a mão no rosto para tentar enxugar, mas estava encharcado. Deu mais um passo atrás e afastou-se das pequenas repartições e foi a vez das torneiras atacarem-no. Três ao mesmo tempo, esguicharam com tamanha força que ele parecia estar sendo atacado por golpes. Atingiram suas costas e costelas. Com o susto e a força, caiu de joelhos e berrou. Enfim, alguém conseguiu arrombar a porta e os ataques cessaram. Algumas pessoas assustadas e curiosas observavam da entrada do banheiro, sem entender de onde havia vindo tanta água, e porque Prado estava de joelhos no chão, todo encharcado e com uma expressão de agonia.

- Não perguntem nada... – disse ele, tentando recuperar o controle e o fôlego.

Saiu pingando do banheiro, sob olhares atônitos. Caminhou até o caixa, molhando todo o chão do restaurante. Alguns seguravam uma risada, mas a maioria expressava uma grande curiosidade. Um tanto quanto zangado, dirigiu-se ao homem que estava atrás do pequeno balcão perto da entrada do restaurante.

- Quanto devo?

- São doze e cinqüenta, senhor... – respondeu o homem, um tanto quanto constrangido e sem saber como dizer.

Prado sacou da carteira em seu bolso, abriu, procurou pelas notas e deixou duas delas, uma de dez e uma de cinco, encharcadas sobre o balcão.

- Pode ficar com o troco... – disse, rancoroso.

Caminhou pela porta do restaurante, andando vagarosamente. Antes de sair, olhou para trás, para a cara do caixa que acabara de atendê-lo.

- A propósito... vocês tem um grande problema no banheiro...

Chegou até o carro. Assim que sentou, molhando o banco de couro, dezenas de palavrões passavam pela sua mente. Mais até do que ele achava que conhecia. Isso só podia ser um pesadelo. Mas no fundo, estava assustado. Era a segunda vez que algo estranho e inexplicável lhe acontecia num banheiro. Isso, sem contar a morte pra lá de bizarra do funileiro no sábado passado. Algo estava errado. Talvez fosse melhor ir a uma rezadeira, ou qualquer coisa do tipo. Será que alguém teria colocado algum feitiço nele? Já ouvira falar dessas coisas. Será? Talvez algum dos invejosos que o bajulavam tivessem feito isso, tentando tomar seu lugar no banco. Mas quem? Seria Fernando? Não, Fernando era um puxa-saco autêntico. Não seria capaz. Seria então Wendel? De forma alguma, Wendel era um bundão. Não tinha peito para um cargo como o de gerente. Pensou então em Marisa. Sim, aquela cobra bem poderia desejar o seu cargo. Mas ele já lhe dera uma promoção, depois de terem dormido juntos. Será que ela queria mais? Hum, uma coisa a se pensar.

Essas dúvidas permaneceram na cabeça de Prado até que chegou ao banco. Suas roupas estavam relativamente secas, mas pareciam ter acabado de sair da máquina de lavar. Tentou entrar rapidamente sem ser visto, chegar à sua sala e trocar de roupa. Teve sorte e foi abordado apenas pela sua secretária, Cristiane.

- Nossa, Prado, o que aconteceu? – perguntou, estupefata.

Olhou para ela, deu um sorriso que o deixou com feições quase insanas.

- Tive problemas com a descarga... – disse, rindo sozinho em seguida. Entrou em sua sala, fechou a porta atrás de si e ignorou a cara de espanto de Cristiane.

Foi até o armário ao lado esquerdo da sala e pegou roupas limpas. Trocou-se rapidamente. Sentou-se na sua cadeira confortável, esticou as costas, espreguiçou. Mal teve tempo de desfrutar e seu telefone tocou.

- Oi... – atendeu, com a voz sem firmeza devido ao esticamento.

- Prado... pode vir aqui? Tem um problema com seu carro... – disse a voz de Cristiane, do outro lado da linha.

- Com meu carro? Tá, já tô indo.

Nem deu tempo de Cristiane dizer mais nada, saiu rapidamente para ver o que havia. Seu carro era novo, que problema podia haver?

- O que foi Cris, o que houve? – perguntou para a secretária.

- Bem... parece que um galho da árvore perto de onde você parou quebrou e... melhor você mesmo ver... – hesitou a garota.

Prado correu até o estacionamento. Na sua vaga preferida, embaixo de uma árvore que ficava num pequeno barranco além do estacionamento, estava seu carro. E um galho enorme sobre ele. Aproximou-se para avaliar o estrago, amaldiçoando sua sorte. Quase teve um ataque quando alcançou o carro, entre alguns curiosos. O galho havia caído de ponta, bem em cima do capô, e parecia ter perfurado até o motor.

- Não acredito nisso... putz... – resmungava Prado, inconsolável.

Alguns funcionários tentavam acalmá-lo.

- Fica calmo, Prado. O seguro cobre isso aí, não esquenta.

- É. Vou ligar pro seguro...

Assim que começou a dirigir-se de volta para o escritório, trombou com um homem que estava por ali, aparentemente indo para um dos carros. A trombada foi tão forte que Prado acabou se machucando com um pequeno corte na barriga. O rapaz se desculpou, mas Prado estava preocupado com o automóvel e nem lhe deu atenção. Subiu depressa as escadas e seu celular tocou.

- Alô!

- Prado? É o Perez, do Uno. Precisamos resolver o conserto do carro...

- Cara... não esquenta... eu nem carro tenho mais...

*****

Epílogo: Miguel acabava de chegar em casa. Fora um dia cheio. Teve de ter muita paciência, mas valera a pena, pois ele conseguira o que queria. Deixou o bloco de notas e o pequeno gravador sobre o rack do computador, assim que chegou ao quarto. Começou a abrir a camisa, o dia estava quente. Tinha sido mesmo um bom dia. Do bolso, tirou o que tanto queria. Duas canetas com pontas que funcionavam como seringas. Em cada uma delas, uma amostra de sangue. Uma de Perez e a outra de Prado. Sim, isso era o mais importante. Afinal, o bloco de notas que o acompanhara estava em branco e o gravador, sequer tinha fita. Mas na amostra de sangue ele saberia quem realmente eram Perez e Prado.

Música desse episódio - Moondance (Nightwish):

http://rapidshare.com/files/53894359/Nightwish_-__Moondance.mp3