Perez já havia esquecido os acontecimentos bizarros do último fim de semana. O trabalho lhe ocupava a mente e o distraía. Nem se lembrara de comprar o tal jornal de Miguel para ver a matéria. Mas, a princípio, ninguém o acusara. Tinha o tal de Prado como testemunha e as evidências indicavam que ele não era o agressor e sim, o agredido. Restava esperar, teria de depor em alguns dias, mas, até lá, só tinha de concentrar-se no trabalho e na mãe doente. Hoje, por sinal, seria uma noite longa. O Retiro Paraíso havia ligado, sua mãe havia tido uma crise e estava sedada. Repetia que queria vê-lo, que precisava falar-lhe. Estava preocupado e ansioso para vê-la, mas de nada adiantaria ir agora, pois os medicamentos a faziam dormir por horas. Sendo assim, nada mais útil do que terminar seus afazeres e só depois, assim que anoitecesse, ir até lá. Felizmente, do trabalho não podia reclamar, já que as encomendas se sucediam. Pensava até em contratar mais alguém para ajudar Rogério no atendimento, mas, pensando melhor, o rapaz era bem competente e merecia um aumento, isso sim. Bom, faria isso no próximo mês.
*****
Há alguns dias Prado tinha de acordar mais de uma hora antes do habitual. Seu carro estava no conserto e tinha de ir para o trabalho de metrô. Com a quebra do carro percebera também que não possuía amigos na empresa, apenas interesseiros, pois nenhum deles fora capaz de lhe oferecer uma carona. Bom, ele se lembraria disso na hora de promover alguém, ah, com certeza que sim. E, só por via das dúvidas, iria a uma mãe de santo, feiticeira, macumbeira ou qualquer coisa do tipo, pra saber se tinham lhe posto um olho gordo ou era só azar mesmo. Mas não faria isso de metrô e nem pagaria um táxi. Não, recorreria às opções que tinha. Pegou o pequeno celular e procurou um nome na agenda. Selecionou o de Graziela e ligou.
- Oi Grá, tudo bem?
- Oi Prado. Tudo bem. Acordei há pouco e acabei de tomar um banho. – respondeu a garota, visivelmente animada com a ligação.
- Preciso de uma ajuda sua, preciso saber onde tem uma rezadeira, ou qualquer coisa do tipo. Sei que você conhece bem essas coisas, então, se puder me ajudar.
- Ah sim, claro que posso. Tem uma que não fica muito longe do banco. Se quiser, eu posso ir com você até ela.
- Quero sim... será que tem como você me pegar aqui no banco? Eu tô sem carro...
- Ah, claro, pode deixar! Passo aí em meia-hora, pode ser?
- Tá ótimo Grá, obrigado. Um beijo.
Mal esperou pela resposta de Graziela, desligou o celular. Recostou-se à cadeira confortável e confirmou o horário na tela fina de LCD do computador à sua direita na mesa. Faltava pouco mais de 20 minutos para que pudesse ir embora. Isso quer dizer que ainda tinha tempo para um café na cozinha. Saiu da sala satisfeito, conseguira uma carona para casa. Passando pela mesa de Cristiane, convidou a secretária para acompanhá-lo no café. A moça deu de ombros e aceitou, aumentando a satisfação de Prado. Quando a contratou, há pouco menos de um ano, ela foi selecionada entre uma dezena de candidatas por seu carisma, simpatia, pelas belas pernas e enormes seios, mas, até então, ele não havia tido muita sorte em suas investidas e ela nunca aceitara um convite para sair, já que tinha um namorado. Mas nem por isso Prado havia desistido. Talvez fosse só uma questão de tempo, quem sabe? Bom, tudo bem, por hora, se contentaria com o café, afinal, uma bela companhia no café era bem melhor do que o bando de bajuladores que costumava rodeá-lo.
*****
Perez fora acordado por Ana, a enfermeira do Retiro Paraíso. Ele estava com sua mãe no quarto desde às 8 da noite e, no momento, cochilava tranquilamente na cadeira ao lado da cama. A enfermeira o tirara da soneca porque era hora de sua mãe ser medicada. A velha senhora também dormia, embora não tão tranquilamente quanto o filho, já que tinha a respiração pesada e barulhenta.
Enquanto Perez se levantava esfregando os olhos, uma auxiliar de enfermagem preparava a injeção de sua mãe. Perez afastou-se, aproximando-se da porta e de Ana, que o convidou para tomar um café na cozinha, enquanto a auxiliar ministrava o medicamento. Sonolento, Perez aceitou. Saíram pelo corredor e desceram de elevador até o primeiro andar. Viraram à direita, indo na direção contrária à recepção e, atravessando uma porta que tinha um cartaz com os dizeres “somente pessoal autorizado”, chegaram até a cozinha. O cômodo não era muito grande, na verdade, era um pouco apertado. Havia uma pia à esquerda e um galão de água descansava sobre um suporte. Um armário grande ao fundo e uma bancada à esquerda deixavam pouco espaço para a mesa de centro, com apenas seis cadeiras. Na bancada, havia um microondas e um mini-fogão de duas bocas. Mas Perez não prestou muita atenção a esses detalhes e sentou-se numa das cadeiras, ficando de frente para a porta, enquanto Ana dirigiu-se à pia. Enquanto lavava as mãos, perguntou se Perez queria café ou preferia chá. O rapaz preferiu café, pensando que isso o ajudaria a vencer o sono. Ana pegou a garrafa sobre a mesa notou que estava quase vazia.
- Hum... – disse ela, pensativa – Vou até a cozinha pegar café feito agora e já volto. - Saiu em seguida.
Perez sabia que ela se referia à cozinha industrial, onde eram preparadas as refeições dos internos. Ele conhecia as dependências do prédio. Sabia até que o lugar adequado para tomar o tal café seria no refeitório, mas já algumas vezes Ana o convidara para um café na cozinha pessoal dos funcionários e a companhia dela sempre era tão agradável que ele acabara se acostumando.
Não demorou muito e a jovem enfermeira retornou com a garrafa cheia de café. Serviu um copo para cada, sentou-se do outro lado da mesa e começaram a conversar. De princípio, a conversa era a mais formal possível. Falaram sobre o estado da mãe de Perez, sobre os medicamentos e sobre outras coisas sem muita importância. Até que Ana decidiu mudar o rumo da conversa, partindo para uma conversa mais informal e pessoal.
- E então Perez, como anda a vida? Já tá pensando no casamento? – perguntou, tentando esboçar alguma empolgação.
Perez riu, um riso discreto, de desdém.
- Casamento? Claro, só falta a noiva... – gozou.
- Ué, mas e a Cláudia, sua namorada? – perguntou, surpresa.
- Ex-namorada, você quer dizer... a gente terminou, já tá com mais de um mês.
- Ah... – disse Ana, visivelmente constrangida pela falta de tato na pergunta.
- É, ela não tava acostumada com meu jeito... hã... meio “selvagem” de ser. Queria ir em churrasco todo dia com a turma da faculdade dela, e queria que eu fosse também. Não dá. E sem contar que não tenho hora pra vir aqui ver minha mãe e isso a estava incomodando, então, foi melhor terminar.
- Ah... e você tá bem? Quer dizer, desculpa ser intrometida, só...
- Não, não, – interrompeu Perez – tudo bem, não tenho problema pra falar disso. Mas eu tô bem sim.
- Então tá. – concordou Ana, com um sorriso afável, baixando a cabeça um pouco para sentir o cheiro do café antes de tomar mais um gole.
Perez só então parou para reparar na moça. Sabia que ela era jovem, tinha apenas 25 anos. Possuía cabelos longos e pretos, sempre presos atrás da cabeça, formando um rabo. Seus olhos pretos eram grandes e expressivos, pareciam sempre alerta. A boca tinha lábios finos e desenho delicado, assim como o resto da face. Ele a vira poucas vezes sem o jaleco de trabalho, mas fora suficiente para ver que possuía um belo corpo, talvez um pouco magra, ou, talvez isso fosse só a impressão que ficara devido a só vê-la assim de cabelo solto. De qualquer forma, era uma bela garota. E sua companhia estava sendo sempre tão agradável. Decidiu prosseguir com o papo.
- E você, Ana, vai casar? – perguntou, tentando parecer sério.
- Rá! – disse ela – Claro, assim que eu encontrar um vampiro... afinal, só vivo de noite! – riu.
- Tá dizendo que não tem namorado? – insistiu Perez, em tom de sarcasmo.
- Não. O último que tive me ligou bêbado numa madrugada dizendo que tava saindo de uma balada direto pro motel com uma menina que tinha conhecido.
- Não...! O cara fez isso? – espantou-se.
- Pois é... e no dia seguinte me acordou às duas da tarde com cara de cachorro sem dono, pedindo desculpa.
- E você desculpou? – mais sarcasmo.
- Claro... – disse ela, também em tom de sarcasmo – Falei pra ele que ia pensar e ligava de volta. Ele tá esperando faz quatro meses... hahaha! – riu, enfim.
Perez riu também. Depois, ficaram em silêncio e foi Perez quem o quebrou.
- Bom, a gente podia... – foi interrompido.
- Perez, dá licença, mas sua mãe acordou e tá chamando seu nome.
A expressão alegre e despreocupada desapareceu do rosto do rapaz, assim como da enfermeira, e ambos foram até o terceiro andar, ao quarto da mãe dele. A velha senhora parecia lúcida. No entanto, assim que o viu, foi tomada por pânico. Seus olhos estavam arregalados e lágrimas começaram a escorrer. Perez abraçou-a.
- Calma mãe, tá tudo bem... – disse ele, contendo o choro.
- Meu filho... – gaguejou a mulher, mal conseguindo falar – eu vi seu pai... ele falou pra você tomar cuidado...
- Tá mãe, pode deixar... – concordou, tentando acalmá-la.
- Ele me disse... – choramingou a velha – que o ritual foi feito... e agora o mal está solto de novo... que eles virão atrás de você... – seu olhar era puro desespero.
Perez abraçou-a mais forte, sem prestar atenção ao que ela dizia. Aos poucos, ainda nos braços do filho, ela foi se acalmando. Cessou o choro e voltou a deitar-se. As auxiliares mediram sua pressão, não estava alterada. Mas ela estava novamente sonolenta, efeito dos remédios. Perez deu a volta na cama e sentou-se ao seu lado, segurando fortemente sua mão. Ana permaneceu um pouco à porta e, logo, dizendo que estaria em sua sala, se retirou. Não demorou muito para que a senhora voltasse a dormir e, por um momento, o jovem sentiu-se tentando a continuar a conversa com Ana. Mas uma coisa que a mãe dissera não lhe saía da cabeça: “o ritual foi feito. O mal está solto. Eles virão atrás de você”. O que queria dizer? Teria sido apenas delírio da mente já perturbada de sua mãe? É provável que sim, mas, mesmo assim, graças aos acontecimentos estranhos dos últimos dias, isso o estava incomodando.
*****
Graziela, como sempre, era pontual. Prado não gostava muito de andar no seu Ford Ka 2001, mas, embora não fosse possível compará-lo com seu Corola 2007, era muito melhor e mais confortável do que andar de metrô. Por isso mesmo, tentou ser o mais simpático e agradável possível enquanto se dirigiam à tal macumbeira que Graziela dissera conhecer. Felizmente, chegaram logo, a fome começava a incomodar Prado. A casa parecia normal. Tinha um portão baixo e um muro que terminava numa grade que não chegava a dois metros de altura. Do lado de dentro, um jardim bem cuidado, atravessado por um caminho cimentado que levava à casa, que tinha uma pequena área coberta e porta de madeira escura. Graziela tocou a campainha pela segunda vez e uma senhora com uma saia branca e blusa vermelha, com um lenço na cabeça, atendeu. Pediu que entrassem e dirigiu-se aos fundos da casa, indo pelo lado de fora. Graziela e Prado seguiram-na, passando pelo jardim e acompanhando o caminho de flores variadas. Chegaram a um cômodo de fundos e, assim que entraram, a mulher pediu que fechassem a porta.
- Olá, “mãe Doraci”, esse é o Prado, que te falei. – disse Graziela, em baixo tom de voz.
- Você falou de mim pra ela? – perguntou o rapaz, num sussurro.
- Claro, eu liguei pra marcar consulta. Acha que é assim, chegar e ir passando? Ainda bem que ela tinha horário vago. – sussurrou de volta a garota.
- Você, Prado, senta aqui. Graziela, você pode esperar aí no sofá.
Desconfiado, Prado sentou-se numa cadeira, de frente para uma mesa de toalha branca, com alguns badulaques
- Então Prado, você quer saber se alguém fez feitiço pra você? – perguntou a mulher, sentando-se à sua frente.
- É... – respondeu ele, sem muita convicção. No fundo, sentia-se ridículo se submetendo a esse tipo de situação.
A mulher, que devia ter quase cinqüenta anos, poucos cabelos brancos num rosto cansado, começou a jogar algumas pedras, búzios talvez, ele não sabia ao certo.
- Hum... – disse a mulher enfim, depois de jogar várias vezes as peças – tô vendo que tem uma loira no seu futuro...
Prado olhou de soslaio para Graziela, fez cara de desdém, afinal, a garota era morena.
- Vai te causar problemas... mas vai piorar... – continuou a vidente.
Imaginou quem seria a tal loira. Marisa era morena. Cristiane também. Não se lembrava de nenhuma que pudesse fazer-lhe algo de ruim.
- Aqui eu vejo... – prosseguiu – um ritual! – exclamou – Me deixa ver sua mão! – disse, agitada.
Prado obedeceu e a mulher examinou sua mão demoradamente. Olhou em seguida pra ele.
- Você... tem algo estranho em você... – divagou – Você não é quem diz ser... mas você ainda não sabe quem é! E o mal está ao seu lado!
Prado tirou a mão de súbito das mãos da mulher.
- Tá, tá, acho que já chega, né? – disse, um pouco irritado e sem paciência.
Nesse momento, ouviram um ruído surdo dentro do pequeno quarto, que parecia com o de alguém batendo contra a parede.
Prado não se deteve. Tirou uma nota de cinqüenta da carteira e colocou sobre a mesa. A mulher olhava desconfiada.
- Espere! – disse ela – Leve esse amuleto. Ele vai te dar proteção. – concluiu, pegando numa gaveta da mesa uma pequena pedra pintada com verniz e com inscrições inteligíveis, presa por um cordão preto. Prado apanhou-a e virou-se para sair, mas foi seguro pela mulher.
- O amuleto custa 20... – disse, sem se alterar.
Prado sorriu, com desdém. Ele, que estava acostumado a levar as pessoas na conversa estava sendo enganado pela tal “mãe Doraci”. Pegou os vinte reais e pagou sem reclamar, para que pudesse sair logo dali, estava cansado, com fome e irritado. Não fosse Graziela a dona do carro, ele a deixaria aí.
Puxou a porta e a maçaneta estava travada.
- Aí, dona cigana... – brincou – a porta tá trancada.
- Não está não, é só puxar, meu filho. – respondeu Doraci, sem se importar com a brincadeira.
- Não, tá fechada...
Mal terminou a frase e novo barulho na parede foi ouvido, dessa vez, bem mais alto. Alguns objetos nas estantes vieram ao chão, como se alguém estivesse balançando-as. Doraci começou a olhar para os lados, assustada, e berrou.
- Quem tá aí? Manifeste-se!
Prado olhou para Graziela, com um olhar sarcástico. Mas no fundo ele estava apavorado, pois não era a primeira vez que isso acontecia. Graziela levantou-se, também assustada, mas sem disfarçar. De repente, a mesa tremeu e moveu-se com violência, atingindo Doraci. Ela recuou, disse dois ou três palavrões e tentou entoar uma oração pagã. Então Prado puxou a porta com mais força e conseguiu abri-la e, tão rápido como começou, a manifestação parou.
O rapaz pegou a moça, que ainda estava boquiaberta, pelo braço e puxou-a, sem ao menos se despedir de mãe Doraci.
- Vamos embora! – disse, guiando-a ao carro.
Quando saíram dali, Prado tentou parecer natural e despreocupado e convidou Graziela para jantar em seu apartamento. Mais do que uma forma de agradecimento, não queria ficar sozinho e, pra falar a verdade, também não queria que Graziela ficasse sozinha. Imaginou que isso podia se repetir e queria protegê-la, embora não soubesse bem como. Na melhor das hipóteses, teria a ótima companhia de uma excelente cozinheira para a refeição, depois dela preparar o jantar pra ele, claro.
Música desse episódio: Ritual - Ash. Baixe:
http://rapidshare.com/files/55721215/Ash_-_ritual.mp3.html