quinta-feira, 6 de setembro de 2007

Episódio 2: O que os Olhos Não Vêem



Perez acordou de repente. Mal se lembrava de ter deitado na noite anterior. Espreguiçou-se demoradamente e com um gemido de satisfação, só então percebendo que a luz estava acesa. Seraáque estava tão cansado quando se deitou que esquecera até de apagar a luz? Talvez. Apanhou o celular ao lado da cama e constatou no pequeno visor que já era de manhã. Seus olhos estavam cansados, mas precisava levantar. Tinha trabalho a fazer e, além disso, seu carro ainda estava amassado. Sentou-se na cama, esfregou os olhos mais uma vez, e se pôs em pé. Foi até a janela e abriu-a, permitindo que o sol ainda tímido da manhã invadisse o quarto, dando-lhe boas vindas. Bocejou mais uma vez. Tirou a camisa velha e sem mangas com a qual dormia e foi ao banheiro. Demorou poucos minutos para lavar o rosto e escovar os dentes. Voltou ao quarto e trocou de roupa. Vestiu uma camisa preta com apenas três botões na gola, uma calça jeans já um pouco velha e sapatos marrons.

Na cozinha, pegou o leite na geladeira à direita e o despejou numa caneca. Misturou com Nescafé em seguida e levou ao microondas. Programou o tempo do aquecimento, mas o aparelho simplesmente não ligava. Verificou o fio de energia, tudo parecia normal. A luz da cozinha acendeu normalmente quando ele testou o interruptor, mas o microondas continuava apagado. Deu um suspiro de desânimo e o eletrodoméstico ligou, como se por mágica. Sorriu. Esquentou seu café e desceu para o trabalho, logo Rogério chegaria para abrir a loja. Apesar de todos os problemas e da morte extremamente suspeita do funileiro, do qual, inclusive, ele podia ser apontado como suspeito; a vida continuava.

*****

Pela primeira vez em muito tempo, Prado estava atrasado para o trabalho. Odiava isso. Ser pontual e eficiente eram suas principais qualidades, não podia permitir que falhas assim acontecessem. De qualquer forma, logo chegou ao trabalho e parecia que o mundo estava acabando. Duas filiais do banco estavam com grandes problemas. Ele teria de se locomover até lá para resolver tudo. Assim que chegou à sua sala, sua secretária o abarrotou com recados dos gerentes das filiais. O telefone tocava insistentemente. Nem se deu ao trabalho de atender. Sentou-se em sua confortável cadeira de couro e pediu que sua secretária cuidasse de tudo, ele estava de saída. Bela maneira de se começar uma segunda-feira. Agora teria de viajar com o carro amassado. Como diria Garfield, “Odeio segundas-feiras”, sorriu Prado, ao sair pela porta do banco e avançar até o estacionamento.

*****

Era quase hora do almoço quando Rogério interrompeu Perez na oficina nos fundos da loja.

- Perez, tem um cara te procurando... disse que queria falar com você. – disse Rogério, duvidoso.

- Tá, já vou atender. – respondeu Perez, sem dar muita importância.

Pouco depois, quando chegou à loja, encontrou um rapaz louro e bem vestido, com olhos fundos e penetrantes, aguardando com as mãos no bolso e um meio sorriso.

- Pois não, senhor, queria falar comigo? – indagou Perez, imaginando ser algum cliente, talvez insatisfeito.

- Olá sr. Perez. Meu nome é Miguel, sou repórter. Será que podemos falar sobre o funileiro que morreu no sábado? – disse o estranho, sorrindo e estendendo a mão num cumprimento.

Perez retribuiu ao cumprimento, mas hesitou por um momento. Um repórter? Será que era mesmo suspeito de assassinato? Realmente ele havia lutado com Roberto, mas a morte havia sido um acidente, tanto que ele próprio havia sido eletrocutado e só estava vivo por puro milagre.

- Tudo bem, Miguel, - respondeu enfim – venha até a oficina e a gente conversa.

Perez voltou-se e caminhou de volta para a oficina, seguido por Miguel. Sentaram-se, Perez no lugar de sempre, junto à bancada à direita e com dois micros desmontados à sua frente, e Miguel, numa cadeira pouco confortável próximo à porta.

- Então Perez, pode me dizer exatamente o que aconteceu naquela oficina? – indagou Miguel, sem delongas.

Perez olhou sério para seu interlocutor. Pensou por alguns instantes e em seguida começou a falar. Contou como ele e Prado esperavam para serem atendidos e foram atacados pelo funileiro, como os dois lutaram e acabaram tomando um forte choque que, para Roberto, foi mortal.

Miguel ouvia a tudo, sem interromper, anotando num pequeno bloco de notas, enquanto gravava a conversa num pequeno gravador. Parecia atento a tudo que Perez falava. Fez perguntas para entender melhor, andou pela oficina. Perguntou sobre a família, sobre os pais adotivos e até coisas aparentemente irrelevantes. Disse que acreditava na inocência de Perez, que uma matéria bem redigida poderia ajudá-lo a provar.

Enfim, depois de muita conversa, disse que era o suficiente. Colocou-se em pé e pediu para que Perez o acompanhasse à saída. No entanto, antes de sair pela porta da oficina, Miguel voltou-se rapidamente, para mais alguma questão que lhe ocorrera de última hora, mas o movimento fora tão brusco e repentino que sua caneta perfurara a barriga de Perez, provocando uma leve picada.

- Ow! – gritou Perez, de pronto.

- Desculpa Perez... fui desajeitado... e só queria agradecer pela entrevista.

- Tá, tudo bem... mas toma cuidado, essa sua caneta é bem afiada... – reclamou Perez.

Miguel finalmente se despediu e partiu. Perez esperou que ele saísse pela porta e voltou-se para Rogério, distraído do outro lado do balcão.

- Rogério, só vou trocar de camisa porque essa sujou de sangue um pouco e você pode ir almoçar.

- Ok, chefe! – sorriu o rapazote, em tom irônico.

*****

Prado já havia resolvido um dos problemas. Coisa simples para ele. Mas o gerente da filial 23 era novo e não estava habituado a lidar ainda com certas ocorrências. Mas o segundo problema parecia difícil. Bem mais difícil. Por isso mesmo ele ficara tão feliz ao solucioná-lo antes do almoço. O dia parecia estar melhorando, enfim.

Conseguiu parar num restaurante razoável a caminho da matriz. Já era um pouco tarde, passava das 13 horas, por isso, o local não estava tão lotado. Conseguiu uma boa vaga na sombra para o seu carro, afinal, o sol forte era de rachar. Teve o cuidado de tirar o dvd player, recém-adquirido, e guardar dentro do porta-luvas. Desceu e enquanto caminhava até o restaurante, pôde ouvir o apito do alarme sendo acionado pelo botão em seu chaveiro.

Já do lado de dentro, escolheu uma mesa próxima à tv, queria ver os esportes enquanto comia. Sentou-se e logo uma mulher de meia-idade veio atendê-lo. Apesar da aparência de cansaço, exibia um belo sorriso.

- Pois não senhor, já escolheu? – perguntou, amável.

- Sim, eu vou querer o prato do dia... mais uma coca zero em lata com um pouco de gelo e limão. – disse Prado, sem prestar muita atenção nela, o programa de esportes estava interessante.

Para não atrapalhar, a mulher fez um aceno de cabeça e saiu para providenciar o seu pedido.

Os minutos passaram rápido, pois, apesar de faminto, não estava com pressa. Já havia resolvido dois problemões na parte da manhã, poderia pegar leve na parte da tarde então. E tudo parecia calma, se houvesse alguma emergência e precisassem dele, alguém ligaria em seu celular. Dessa forma, só restava aproveitar a refeição que acabara de chegar. O refrigerante havia sido servido antes, então, já estava na metade. “O copo está meio vazio, ou está meio cheio?”, pensou, rindo sozinho, enquanto começava a comer.

Vinte minutos depois, estava satisfeito. Pena o restaurante ser tão longe do local em que trabalhava, pois a comida era excelente. Aproveitou que o programa de esportes já tinha acabado e levantou-se para ir ao banheiro.

Entrou e a porta fechou-se atrás dele. Esvaziou sua bexiga e, enquanto lavava as mãos, fez algumas caretas frente ao espelho, para ver se havia algum resquício indesejável de comida por entre os dentes. Felizmente seu sorriso branco estava indefectível. Sorriu e foi para a porta. Puxou e a maçaneta não se moveu. Insistiu e, apesar dela virar, a porta não abriu. Ouviu o som da descarga. Lembrou-se do outro dia, no banheiro da lanchonete. “De novo não...”, pensou. De repente, todas as descargas foram acionadas simultaneamente. O mictório ao fundo começou a escorrer, como se o registro tivesse sido aberto e, uma a uma, as torneiras começaram a despejar água.

- Sem chance... isso só pode ser brincadeira... – disse Prado, para si mesmo, tentando entender o que acontecia.

Largou a maçaneta da porta. Caminhou lentamente, empurrou a porta da primeira repartição do banheiro. Estava vazia. Mas a água do vaso descia fortemente, indicando que a descarga estava acionada. Repetiu o mesmo com as outra cinco repartições e a situação em cada uma era a mesma. Tentou se acalmar e recuou. Experimentou a torneira e estava fechada. Ainda assim, a água saía como se estivesse aberta ao máximo. Desistiu de tentar entender o que estava acontecendo. Correu até a porta e bateu nela com a mão fechada, tentando chamar a atenção de alguém do lado de fora. Mas parecia não haver ninguém. Ele sabia que havia, mas ninguém prestava atenção o suficiente para ouvi-lo. De repente, o barulho das descargas ficou mais forte e notou que a água começava a escorrer pelo chão. Curioso, aproximou-se novamente da primeira repartição. O “tipt-tapt” do seu sapato contra o chão molhado mal podia ser ouvido. Deu um passo e parou à porta da repartição. Parecia que a água queria passar-lhe uma mensagem... que besteira, como poderia pensar em algo assim? Com certeza, era apenas sua cabeça pregando-lhe uma peça e o fato de quase poder enxergar um rosto (pelo menos dois olhos e uma boca) na água que finalmente se acalmava no vaso, era apenas pelo iminente pânico que sentia. Então, projetou o tronco para frente para olhar melhor para a face que se formava no vaso e foi surpreendido. Um jato de água atingiu-o direto no rosto, de súbito. Tentou dar um passo atrás, mas escorregou e atingiu o chão molhado, batendo com as costas no piso. Gemeu de dor, e quase podia ouvir uma risada. Levantou-se. A água começava a vazar para fora do banheiro, ouviu batidas na porta e gritos de “a porta emperrou” vindos do restaurante. Passou a mão no rosto para tentar enxugar, mas estava encharcado. Deu mais um passo atrás e afastou-se das pequenas repartições e foi a vez das torneiras atacarem-no. Três ao mesmo tempo, esguicharam com tamanha força que ele parecia estar sendo atacado por golpes. Atingiram suas costas e costelas. Com o susto e a força, caiu de joelhos e berrou. Enfim, alguém conseguiu arrombar a porta e os ataques cessaram. Algumas pessoas assustadas e curiosas observavam da entrada do banheiro, sem entender de onde havia vindo tanta água, e porque Prado estava de joelhos no chão, todo encharcado e com uma expressão de agonia.

- Não perguntem nada... – disse ele, tentando recuperar o controle e o fôlego.

Saiu pingando do banheiro, sob olhares atônitos. Caminhou até o caixa, molhando todo o chão do restaurante. Alguns seguravam uma risada, mas a maioria expressava uma grande curiosidade. Um tanto quanto zangado, dirigiu-se ao homem que estava atrás do pequeno balcão perto da entrada do restaurante.

- Quanto devo?

- São doze e cinqüenta, senhor... – respondeu o homem, um tanto quanto constrangido e sem saber como dizer.

Prado sacou da carteira em seu bolso, abriu, procurou pelas notas e deixou duas delas, uma de dez e uma de cinco, encharcadas sobre o balcão.

- Pode ficar com o troco... – disse, rancoroso.

Caminhou pela porta do restaurante, andando vagarosamente. Antes de sair, olhou para trás, para a cara do caixa que acabara de atendê-lo.

- A propósito... vocês tem um grande problema no banheiro...

Chegou até o carro. Assim que sentou, molhando o banco de couro, dezenas de palavrões passavam pela sua mente. Mais até do que ele achava que conhecia. Isso só podia ser um pesadelo. Mas no fundo, estava assustado. Era a segunda vez que algo estranho e inexplicável lhe acontecia num banheiro. Isso, sem contar a morte pra lá de bizarra do funileiro no sábado passado. Algo estava errado. Talvez fosse melhor ir a uma rezadeira, ou qualquer coisa do tipo. Será que alguém teria colocado algum feitiço nele? Já ouvira falar dessas coisas. Será? Talvez algum dos invejosos que o bajulavam tivessem feito isso, tentando tomar seu lugar no banco. Mas quem? Seria Fernando? Não, Fernando era um puxa-saco autêntico. Não seria capaz. Seria então Wendel? De forma alguma, Wendel era um bundão. Não tinha peito para um cargo como o de gerente. Pensou então em Marisa. Sim, aquela cobra bem poderia desejar o seu cargo. Mas ele já lhe dera uma promoção, depois de terem dormido juntos. Será que ela queria mais? Hum, uma coisa a se pensar.

Essas dúvidas permaneceram na cabeça de Prado até que chegou ao banco. Suas roupas estavam relativamente secas, mas pareciam ter acabado de sair da máquina de lavar. Tentou entrar rapidamente sem ser visto, chegar à sua sala e trocar de roupa. Teve sorte e foi abordado apenas pela sua secretária, Cristiane.

- Nossa, Prado, o que aconteceu? – perguntou, estupefata.

Olhou para ela, deu um sorriso que o deixou com feições quase insanas.

- Tive problemas com a descarga... – disse, rindo sozinho em seguida. Entrou em sua sala, fechou a porta atrás de si e ignorou a cara de espanto de Cristiane.

Foi até o armário ao lado esquerdo da sala e pegou roupas limpas. Trocou-se rapidamente. Sentou-se na sua cadeira confortável, esticou as costas, espreguiçou. Mal teve tempo de desfrutar e seu telefone tocou.

- Oi... – atendeu, com a voz sem firmeza devido ao esticamento.

- Prado... pode vir aqui? Tem um problema com seu carro... – disse a voz de Cristiane, do outro lado da linha.

- Com meu carro? Tá, já tô indo.

Nem deu tempo de Cristiane dizer mais nada, saiu rapidamente para ver o que havia. Seu carro era novo, que problema podia haver?

- O que foi Cris, o que houve? – perguntou para a secretária.

- Bem... parece que um galho da árvore perto de onde você parou quebrou e... melhor você mesmo ver... – hesitou a garota.

Prado correu até o estacionamento. Na sua vaga preferida, embaixo de uma árvore que ficava num pequeno barranco além do estacionamento, estava seu carro. E um galho enorme sobre ele. Aproximou-se para avaliar o estrago, amaldiçoando sua sorte. Quase teve um ataque quando alcançou o carro, entre alguns curiosos. O galho havia caído de ponta, bem em cima do capô, e parecia ter perfurado até o motor.

- Não acredito nisso... putz... – resmungava Prado, inconsolável.

Alguns funcionários tentavam acalmá-lo.

- Fica calmo, Prado. O seguro cobre isso aí, não esquenta.

- É. Vou ligar pro seguro...

Assim que começou a dirigir-se de volta para o escritório, trombou com um homem que estava por ali, aparentemente indo para um dos carros. A trombada foi tão forte que Prado acabou se machucando com um pequeno corte na barriga. O rapaz se desculpou, mas Prado estava preocupado com o automóvel e nem lhe deu atenção. Subiu depressa as escadas e seu celular tocou.

- Alô!

- Prado? É o Perez, do Uno. Precisamos resolver o conserto do carro...

- Cara... não esquenta... eu nem carro tenho mais...

*****

Epílogo: Miguel acabava de chegar em casa. Fora um dia cheio. Teve de ter muita paciência, mas valera a pena, pois ele conseguira o que queria. Deixou o bloco de notas e o pequeno gravador sobre o rack do computador, assim que chegou ao quarto. Começou a abrir a camisa, o dia estava quente. Tinha sido mesmo um bom dia. Do bolso, tirou o que tanto queria. Duas canetas com pontas que funcionavam como seringas. Em cada uma delas, uma amostra de sangue. Uma de Perez e a outra de Prado. Sim, isso era o mais importante. Afinal, o bloco de notas que o acompanhara estava em branco e o gravador, sequer tinha fita. Mas na amostra de sangue ele saberia quem realmente eram Perez e Prado.

Música desse episódio - Moondance (Nightwish):

http://rapidshare.com/files/53894359/Nightwish_-__Moondance.mp3

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