segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

Episódio 7 - Sociedade



Perez segurava a caneta na mão como se o objeto tivesse vida própria e tentasse lutar contra seus dedos. Olhava fixamente para o papel disposto na mesa, como se o mesmo o estivesse encarando. À sua frente, um senhor de meia idade, vestido socialmente e com gravata colorida, olhava-o impaciente. Às suas costas, em pé e com os braços cruzados sob o peito, estava Prado.
- Algum problema, Perez? – perguntou o homem à sua frente.
- Não... – respondeu Perez hesitante – Eu só... ainda não me acostumei com a idéia. – sorriu, meio constrangido, voltando-se para Prado e, em seguida, novamente para a folha.
Enfim, assinou seu nome nele. E nesse momento deixava de ser o único dono da loja de informática que era seu sustento e havia sido destruída no misterioso incêndio. Levantou-se da cadeira, ainda constrangido. Prado estendeu-lhe a mão.
- Então, Perez, nós temos um acordo. Toque aqui... sócio! – brincou.
Saíram do cartório e voltaram para a casa de Perez, que ainda estava quase toda em cinzas. O rapaz estava procurando o que ainda podia ser aproveitado do incêndio. Havia muito pouco. E o pior de tudo, ele estava sem moradia. Tinha de reconstruir o quanto antes o seu negócio, mas o dinheiro guardado que tinha era muito pouco para se manter por muito tempo.
- Hã... Prado... – disse Perez, quebrando o silêncio enquanto dirigia – Desculpa o jeito que te tratei quando veio me falar da sociedade... no fim, queimei a língua...
- Não esquenta, cara. – respondeu Prado – Todo mundo faz besteira às vezes. Mas agora relaxa. O importante é botarmos a loja pra funcionar logo. Ainda mais agora que vamos expandir e transformar em lan house. O dinheiro que eu recebi do banco vai dar pra reconstruir tudo, fica tranqüilo.
- É, ainda bem que você tem dinheiro. Eu tô até sem casa... não quero mais ficar no hotel que passei as últimas noites, preciso alugar uma casa, sei lá...
- Ah, você pode ficar comigo, no meu apartamento, se quiser.
- Ficar... com você...?
- É. Algum problema?
- Não, mas não quero criar problema pra você...
- Criar problema por quê? Você é gay?
- Não, claro que não...
- Ah, então não vai ter problema. – disse Prado, com um sorriso malicioso no rosto.
Chegaram ao que restara da casa de Perez. Olhar para os destroços ainda enchia seus olhos de lágrimas. Prado notou, mas não demonstrou. Ao invés disso, foi adentrando em meio a objetos queimados, vendo se havia algo que valia a pena ser salvo.
Passaram o resto da manhã assim. Já passava do meio-dia quando Prado quis fazer uma pausa para almoçar. Perez recusou o convite, disse que tinha um assunto a resolver. Prado ficou tentando a perguntar o que era, mas se deteve. Então um carro de vidros escuros e placas federais encostou no meio-fio e um rapaz loiro com quase trinta anos desceu do veículo.
- Prado, esse é o Miguel, um... amigo.
- Amigo? Você tem amigos?
- Muito engraçado...
Miguel aproximou-se, cumprimentou os dois rapazes.
- Vamos então, Perez?
- Sim, vamos lá.
Deram as costas a Prado e entraram no carro. Antes de entrar, Perez disse que procuraria por ele quando voltasse, em seu apartamento, para que não se preocupasse porque ele tinha o endereço. Em seguida, o carro partiu. Prado ficou olhando o veículo se afastar e foi interrompido pelo celular. Atendeu, ainda pensativo, enquanto sussurrava “Eu sabia... ele é gay...”.
- Quem é gay? – espantou-se a voz suave do outro lado do aparelho.
- Ah, oi Grazi. Eu só tava lendo uma coisa aqui, não é nada. E aí, tá de folga hoje?
- Sim, você... hã... tá ocupado?
- Pra dizer a verdade, não. E tava pensando mesmo em te ligar. Tô morrendo de fome e queria te levar pra comer em casa...
A garota riu.
- Você não presta mesmo... já pegou seu carro?
- Ainda não. Pode me pegar?
- Tá, me dá vinte minutos que eu tô aí.
Desligou o celular e deteve-se um momento olhando para o aparelho. Aguardava ansioso receber uma ligação do banco falando sobre o emprego a que se candidatara. Estava confiante. Ainda não tinha tido notícias do emprego, então, enquanto nada acontecia, pelo menos se dedicava a seu novo empreendimento. Logo, seria conhecido como um grande empresário. Sorriu, mas sentiu o estômago roncar. “Tomara que a Grazi não demore...”, pensou, afinal, estava faminto.
*****
Perez e Miguel estavam rodando já há algum tempo, mas nenhum dos dois ousava quebrar o silêncio. Perez estava constrangido, enquanto Miguel, de óculos escuros e roupa social, parecia frio e alheio ao passageiro do carro. Mas a verdade é que estava esperando pelas perguntas que o outro ainda não ousava fazer. Então, Perez finalmente tomou coragem.
- Tá, muito bem... me explica como você sabe dessas coisas?
Miguel sorriu. Sem desviar sua atenção da pista, começou a falar.
- Como te disse, sou da polícia federal. Esbarrei com algumas coisas estranhas há alguns anos. Não fiquei convencido de que não era nada e fui verificar. Fiz muita pesquisa, contatei professores de história antiga, cavei o mais fundo que pude. E descobri algumas coisas.
- O que descobriu?
- Bem, basicamente é o seguinte. Há muito tempo, havia essa família. Eles tinham algo de especial, eles eram diferentes. Não consegui rastrear sua origem, mas eles eram caçadores de demônios. Durante a idade média, seus membros desapareceram quase que por completo na caça às bruxas. Muitos foram queimados. Parece que estavam perdendo a guerra com os demônios. Então eles conseguiram se esconder e continuar lutando na clandestinidade, sem que quase ninguém soubesse.
- E o que aconteceu?
- Bom, eu consegui rastrear a genealogia até os dias atuais... o que me levou a você...
- O quê?
- É isso Perez, você é descendente direto dessa família. Por isso o ritual com sangue.
- Mas... – Perez parecia perdido – não faz sentido... por que meu pai deixaria um ritual de libertação de demônios pra mim?
- É o que vamos descobrir. – disse Miguel, parando o carro do outro lado da rua do antigo orfanato Raio de Sol.
Desceram do carro e caminharam em silêncio pela entrada sombria e aparentemente abandonada do enorme prédio. O local parecia deserto. A porta estava aberta, mas não havia ninguém na recepção e o balcão de madeira todo empoeirado dava mostras de que ninguém estivera ali há algum tempo.
- Tem certeza de que é aqui...? – perguntou Miguel, temeroso.
- Claro que tenho, tá achando que tem um burro aqui?
- De forma alguma... – a voz vinha do corredor esquerdo à entrada, e Perez reconheceu-a de imediato, era da freira que lhe entregara o diária, a irmã Dalva – Afinal – continuou – você sempre foi um dos primeiros da sala, não?
- Como sabe? – espantou-se Perez, virando-se para ela e notando que seus cabelos pareciam desgrenhados e sua roupa suja, diferente do asseamento que notara na visita anterior.
- Eu sei tudo sobre você, Perez. – sua voz começou a torna-se mais firme, enchia todo o salão – Sei sobre sua vida e, principalmente, sei que você cumpriu sua missão. Você abriu o portal. E agora, não precisamos mais de você.
Perez e Miguel entreolharam-se. O espanto na cara de ambos era um espelho de medo e dúvida. A freira sorriu.
*****
Prado estava junto ao fogão, temperando a comida, enquanto Graziela, de costas para ele, lidava na pia com as bebidas. Trabalhar como bargirl havia lhe conferido algumas habilidades úteis como, por exemplo, preparar drinques especiais e saborosos. De repente, sem que ela esperasse, Prado abraçou-a por trás, colocando a cabeça por sobre seu ombro. Ela deu um sorriso e acertou-lhe com uma cotovelada, sem força, mas apenas o suficiente para que ele a soltasse. Lidar com engraçadinhos que “avançam o sinal” também era outra de suas habilidades adquiridas no bar onde trabalhava.
- E então... – perguntou Perez, afastando-se com um sorriso malicioso – Já pensou na minha proposta?
- Já sim e não adianta que não vou me casar com você! – respondeu de pronto a garoto, virando-se só um pouco para sorrir.
- Essa não... na proposta de emprego, doida! – riu.
- Ah, essa proposta? Bom, a resposta também é não.
- Ué? Por quê? Já disse que cubro o salário que ganha como bargirl.
- O problema não é dinheiro.
- Então qual é? Não quer que saibam que você sai com o chefe?
- Palhaço...
- Tá, sério, qual o problema então?
- Bom, primeiro que vocês estão começando...
- Não exatamente, - interrompeu Prado – o Perez já tá com a loja há um tempo razoável, só vamos expandi-la.
- Tá, certo, mas a parte da lan house é nova. E eu não entendo nada de computador, vou fazer o quê? Servir bebidas semi-nua para seus clientes?
- Hum... até que a idéia não é má... faz serviço “personal”?
- Se você pagar o preço... – respondeu Grazi, depois de sorrir e mandar um olhar sapeca de soslaio.
- Nesse caso, acho que vou cancelar o seu contrato de trabalho na loja... e ficar com as apresentações semi-nuas só pra mim! – dizendo isso, avançou para cima da garota, mas foi interrompido antes de alcançá-la.
- Melhor parar por aí... ou vamos ter lingüiça no almoço... – disse a jovem, com faca em riste e ainda sorrindo.
Miguel parou onde estava. Olhou para abaixo da própria cintura. “Eu odeio lingüiça...”, disse. Mas Grazi recolheu a faca, aproximou-se e o beijou. “Quanto tempo de comida no fogo ainda?”, perguntou, num sussurro.
- Acho que uns vinte minutos... – respondeu Prado, também num sussurro.
- É o suficiente! – terminou, beijando novamente o rapaz, com mais voracidade.
*****
Antes mesmo que Perez tentasse entender o significado das palavras da freira, ela se investiu contra ele. Miguel tentou impedi-la, mas foi atingido por um golpe que o fez voar alguns metros, caindo quase desacordado próximo à parede. Perez recuou e a freira reduziu a velocidade. Tinha um sorriso sinistro no rosto, que logo se tornou uma gargalhada insana.
- É hora de encontrar “papai”! – zombou, com uma voz gutural e a face transfigurada.
O rapaz quase entrou em pânico, mas conseguiu se conter. Buscou uma saída, mas a freira demoníaca estava entre o corredor e entre a saída, ele estava encurralado no salão. Mesmo assim, deu as costas e correu. As janelas tinham barras de ferro enormes, não havia como sair por nenhuma delas. No fundo do salão havia outra porta. Experimentou, mas estava trancada. Virou-se para o centro e foi recebido por um golpe que mais parecia um coice de um cavalo. Caiu atordoado, sentiu o gosto de sangue na boca e a visão turva. A pouca claridade do ambiente dificultava tudo. Levantou-se e recebeu novo golpe, mas dessa vez não foi atirado ao chão, pelo contrário, o monstro que o atacava levantou-o, prendendo-o pelo pescoço, segurando com uma só mão. O riso no rosto desfigurado da criatura era assustador, monstruoso, mortal. E Perez mal podia respirar. Deu uma tossida e cuspiu, involuntariamente, um pouco de sangue no rosto de irmã Dalva. A freira gemeu, soltou seu pescoço e recuou, com uma das mãos no rosto. Perez caiu de joelhos, tentou se levantar, mas mal podia ficar em pé. A respiração da freira tornou-se pesada e descompassada. Então ele teve uma idéia. Decidiu partir para o ataque, afinal, era tudo que lhe restara. Não fizesse isso, de qualquer forma, assim que se recuperasse, a criatura monstruosa daria fim à sua vida. Mas não partiria de mãos limpas. Não. Tinha um plano. Uma teoria. Cuspiu o sangue que pôde nas mãos. Esfregou-as para espalhar e com as forças que ainda lhe restava, atirou-se com ferocidade contra a freira que não esperava o ataque e foi pega de surpresa. Conseguiu juntar as mãos no rosto da criatura que gemia e dava berros de agonia. Parecia queimar. Em seguida, desmaiou. Perez deixou-a cair, afastou-se um pouco, mal podia continuar acordado. Sentia as mãos queimarem e parecia ter azia, mas com uma intensidade que jamais sentira. Em seu estômago, parecia acumular-se uma bola de fogo. Em seguida, irmã Dalva abriu os olhos. Estavam cheios de lágrimas. Olhou para Perez, parado atônito a alguns passos.
- Obrigado... – disse, com a voz rouca e fraca – por me salvar disso...
Perez sentiu que ia desmaiar, mas foi seguro por Miguel que parecia recuperado quase que plenamente. Ajudaram irmã Dalva a se levantar.
- Perdoe-me... por tudo... – apressou-se em dizer a senhora, que aparentava mais velha e frágil do que antes.
- O que houve? – perguntou Miguel.
- Eu fui... possuída... – revelou a freira, claramente constrangida – esse... demônio, estava dentro de mim e... controlava minhas ações... ele forjou o diário que entreguei a você, Perez. Era tudo um artifício para que você fizesse o ritual.
Mas Perez sequer deu atenção ao que irmã Dalva dizia. Estava mal. Sequer conseguia ficar consciente, apoiava-se em Miguel para não cair.
- Miguel... – disse enfim – me leva pra casa... preciso descansar...
- Mas... e a irmã Dalva? Ela pode precisar de ajuda e também pode nos dizer muito sobre esses demônios, o ritual e tudo o mais...
- Só. Me. Leve. Pra. Casa! – bradou Perez, firme e pausadamente, mas com tanto vigor que fez as poucas luzes do prédio piscarem.
- Ele está certo. – concordou a freira – Leve-o para casa. Depois conversaremos. Ele precisa descansar.
Miguel ainda quis discutir, mas notou que seria em vão e desistiu. Deixou a freira sob a promessa de que voltaria e fez todo o caminho de volta com Perez semi-desperto e em silêncio ao seu lado. Deixou-o no apartamento de Prado. O rapaz subiu até o terceiro andar, bateu à porta. Do lado de dentro, ouviu uma reclamação: “Pô, eu te dei a chave pra quê?”. Quando Prado abriu a porta, deparou-se com Perez e tomou um susto. Seu sócio tinha as roupas sujas, manchas de sangue nas mãos e no rosto, e a cara péssima.
- E aí, posso entrar? – perguntou, demonstrando esforço.
- Hã... claro... o banheiro fica à esquerda...
Perez passou por ele sem dar satisfações e entocou-se no banheiro. Ligou a ducha e entrou embaixo da água sem nem tirar as roupas. A coisa no seu estômago parecia querer sair. Mal teve tempo de abrir o vaso sanitário e vomitar algo nojento, catarro e sangue. Uma mistura escura, quase negra. Sentou-se encostado à parede, a água caindo sobre seu corpo. Então, fechou os olhos e sentiu que as lágrimas fugiam. Sabia o que tinha feito. Não havia matado o demônio. Não, nada disso. Apenas o tinha tirado da freira e o prendido dentro de si. Podia sentir o demônio dentro dele. Seu próprio demônio interno para se preocupar.

sexta-feira, 16 de novembro de 2007

Episódio 6 - A Caixa de Pandora






A mãe de Perez estava no hospital havia alguns dias. Apesar de estar em coma, estava estabilizada e os médicos diziam que as chances dela se recuperar eram grandes. Essa esperança fazia com que o rapaz desse prosseguimento à vida sem se deixar abater por demais. Além disso, a leitura do diário do pai o mantinha ocupado, interessado e intrigado com o conteúdo. Ainda não conseguira entender ou sequer decifrar a maioria das páginas. As folhas faltando pareciam importantes e muitas vezes a caligrafia era totalmente ilegível. Mas ele prosseguiria com calma e paciência. No momento certo, quem sabe, desvendaria os segredos ali escondidos.

- “Patrão”...? – os pensamentos de Perez foram interrompidos por Rogério. Ele olhou para o seu funcionário parado à porta da oficina como se saísse de um transe. – O tal de Prado tá aí, quer falar com você...

Perez concordou com a cabeça e fez sinal que já ia atender. O que o engravatado enxerido poderia querer agora? Deixou de lado o computador que estava consertando, limpou a mão numa flanela apropriada e foi para frente da loja, ver o que seu visitante queria. Encontrou-o com um sorriso largo no rosto, cabelo esculpido com gel, camisa e calça social, de sapatos, mas sem gravata. Estendeu a mão para cumprimentá-lo e tão logo terminaram o cumprimento, procurou ir direto ao assunto.

- E então... queria falar comigo...?

- Sim. Estive pensando na última conversa que tivemos e tive uma grande idéia!

- Que seria...?

- Uma sociedade! O que acha? Eu andei pesquisando e procurando algo em que investir meu dinheiro, sabe, começar um negócio próprio e tal. Fiquei observando e estudando sua loja e acho que seria um bom investimento, pra nós dois! Podemos ampliá-la e... – Perez interrompeu-o.

- Ow, peraí... ficou “observando e estudando minha loja”? Quer dizer que andou me espionando? Que papo é esse?

- Calma, era apenas uma pesquisa de mercado, não fique bravo como se eu tivesse bancado o paparazzo em sua vida pessoal. E além disso, eu tenho de saber no que vou colocar meu dinheiro...

- Não vai colocar seu dinheiro. Não quero uma sociedade com você.

- Mas você nem viu minha proposta!

- E nem quero ver!

- Não seja burro, vai ser muito lucrativo pra você!

- Não quero saber. Não quero ampliar minha loja. Não quero seu dinheiro. Não quero sociedade. Você ficou louco? Eu mal te conheço!

- Não seja cabeça-dura... prefere ficar pra sempre com essa lojinha ganhando só para comer e cuidar da sua mãe? Vamos lá, tenha imaginação!

- Eu tenho imaginação. E quer saber o que mais? Eu tenho amor próprio e pra mim você não passa de um fanfarrão arrogante, um garoto mimado metido a esperto. Agora, se puder me dar licença, tenho de voltar ao trabalho. Na minha loja. Tenha um bom dia. – deu as costas para seu interlocutor e sem olhar para trás voltou para a oficina. Prado ficou parado, vendo-o partir. Olhou para Rogério, obviamente constrangido do lado de dentro do balcão: “Você tem um chefe muito idiota...”, disse, antes de dar as costas e ir embora.

*****

Prado saiu da loja de Perez quase furioso. Respirou fundo, contou até dez e recobrou o controle. Tinha de estar calmo, pois tinha uma entrevista de emprego num banco não muito longe dali. E já que a sociedade tinha sido um fracasso, melhor que conseguisse a vaga no banco. Ficar desempregado começava a ficar desesperador, as contas ainda estavam todas lá, mas o dinheiro só fazia diminuir. Pelo menos seu carro ficaria pronto logo e não teria mais de depender de metrô, ônibus ou caronas.

Chegou ao banco pouco antes que o suor começasse a incomodar. Passou pela porta giratória e se informou com um funcionário que vestia um colete laranja com os dizeres “Posso ajudar?”. Passou pelo segurança, pelos caixas e foi até a última mesa do fundo do banco, que estava vazia. Logo, um senhor de meia-idade, vestido de forma impecável e com óculos com um formato um pouco antigo no rosto apareceu, carregando alguns papéis.

- Pois não? – disse, solícito.

- Bom dia. Sou o Prado, vim para a entrevista. – respondeu, estendendo a mão para um cumprimento.

- Ah sim, sente-se aí, vamos conversar.

Prado sentou-se e conversaram por alguns minutos. Era uma vaga de gerente regional, função simples que ele poderia executar com maestria. O salário era baixo, comparado com o seu anterior, mas tinha chances de progredir no emprego e voltar a crescer profissionalmente, então, estava disposto a aceitar sem demora.

- Você tem um bom currículo, Prado, embora seu último salário esteja bem longe do que posso oferecer...

- Não tem problema, seu Waldir. Eu aceito começar de baixo e o salário que me propôs está ótimo de início. Não comecei ganhando esse salário no meu outro emprego, eu o conquistei com o tempo e se tiver uma oportunidade, vou agarrar com toda força.

O homem sorriu.

- Muito bom, esse seu espírito é inspirador. E suas referências do emprego anterior são muito boas, acho que você vai trabalhar pra mim em breve, Prado.

Foi a vez de Prado sorrir.

- Estou ansioso, sr.

Em seguida, a entrevista terminou. O currículo de Prado seria analisado, mas a entrevista tinha sido boa e ele tinha certeza de que até o fim da semana receberia a confirmação para começar no novo emprego. Enfim as coisas começavam a dar certo novamente. Já não era sem tempo! Saiu do banco caminhando de peito estufado, observando aqui e ali as moças que trabalhavam, avaliando qual poderia servir-lhe de “presa”. No entanto, assim que ganhou as ruas, sentia uma vontade muito forte de encontrar-se com Graziela. Estranho... será que estava se apaixonando por ela ou era apenas carência pelos problemas que vinha enfrentando ultimamente? Fosse o que fosse, ligaria para ela mais tarde, para contar a novidade. Sabia que ela ficaria feliz e o sorriso dela era tão belo que parecia ser capaz de iluminar um cômodo inteiro... opa! Melhor se controlar. Estava tão eufórico que estava beirando a cafonice com textos poéticos malucos! E isso não era nada bom para alguém racional como ele. Ligaria para ela de qualquer forma, mais tarde, apenas para dizer que estava se arrumando novamente.

*****

Embora tivesse expulsado sem muita elegância Prado de sua loja, Perez ficara o dia todo trabalhando com a proposta na cabeça, incomodando seus pensamentos e afetando sua concentração. Ampliar os negócios até que não era má idéia. Mas não podia depender de um sócio, ainda mais de um desconhecido como Prado. Até gostava dele, mas não a ponto de confiar para uma sociedade. Mas, ah, estava cansado. Trabalhara o dia todo. Agora, já noite, tinha acabado de sair do banho e preparou um lanche. Sentou-se no sofá e voltou a ler o diário enquanto comia. Achou, finalmente, algo interessante que não tinha notado antes. Um ritual de proteção contra demônios. E, depois do que vira, não tinha mais dúvidas em acreditar que tais coisas existiam. Terminou o sanduíche e o refrigerante, colocou na pia e voltou ao diário. Leu atentamente as instruções para o ritual. Parecia relativamente simples. Precisava basicamente de sal, alho, um símbolo religioso qualquer e... sangue? Hum, isso era difícil. E o pior, tinha de ser o seu próprio sangue. E agora? Faria isso? Parecia loucura. Mas, por outro lado, não custava tentar.

Preparou os ingredientes e juntou-os na oficina. Um círculo de sal no chão, alho nos quatro pontos cardeais e o símbolo religioso no centro. Com uma faca lavada com água corrente e fervida até evaporar, fez um corte no braço. Gemeu de dor, mas era tarde para recuar. O sangue pingou sobre o símbolo. Leu as palavras que havia no diário. Uma espécie de oração, em que língua, ele não sabia. Repetiu por três vezes. Nada aconteceu. Esperou mais um pouco e só havia o silêncio. Deu um suspiro de frustração. Como podia ser tão ingênuo e acreditar nisso tudo? Até as magias de Harry Potter pareciam mais autênticas. Levantou-se e com o braço ainda ensangüentado, subiu as escadas para lavar-se no banheiro.

Terminou de limpar o sangue e estava enxugando o braço e as mãos com uma toalha quando sentiu cheiro de fumaça. Teria deixado ligado o fogão. Correu para a cozinha e o cheiro vinha da oficina. Desceu pelas escadas como um raio e não podia acreditar no que via. Dentro do círculo de sal, onde fizera o ritual de proteção, havia uma pequena fogueira. As chamas elevavam-se e pareciam ganhar vida de repente. Algumas faíscas voavam pela oficina, o fogo parecia tomar forma, rostos surgiam e pareciam zombar dele. Assim que recuperou o controle foi procurar o extintor que estava na loja. Mas o fogo começou a se espalhar. Assim que atingiu os computadores que estavam para reparo, alguns monitores explodiram. E as chamas começaram a se alastrar e ganhar forma. Perez tentava lutar com o extintor, diminuir o fogo, mas parecia inútil. Um monitor explodiu logo ao seu lado, os estilhaços atingiram seu rosto e seu pescoço, a fumaça o fez tossir, perdeu o equilíbrio e caiu. Seus olhos lacrimejavam e sua garganta ardia, era difícil respirar. Acabou perdendo os sentidos.

*****

Miguel viu a fumaça de longe. Acelerou ainda mais seu carro, pois estava quase certo que aquele era um sinal nada bom. Assim que chegou à casa de Perez, teve confirmação de seus medos. O lugar estava tomado pelas chamas. Já podia ouvir sirenes ao longe, alguns curiosos juntavam-se na frente da loja, alguns até tentavam ajudar de alguma maneira, com baldes de água. Desceu do carro, olhou ao redor e viu que Perez não estava ali. Isso quer dizer que estava lá dentro. E isso também queria dizer que ele tinha de entrar, tira-lo de lá. Mas como? A porta de ferro da loja estava fechada. Com certeza, o vidro por trás dela já devia estar destruído, mas como passar pela porta? Teve uma idéia. Pediu ajuda a algumas pessoas que estavam ali. Pelo canto da loja, apoiando-se na parede e com a ajuda de dois homens, conseguiu subir o suficiente para alcançar o pequeno parapeito do segundo andar. Com muita dificuldade, conseguiu equilibrar-se sobre ele e forçar a janela da cozinha. Estava trancada, mas os vidros haviam se estilhaçado. Retirou o que pôde com a mão, tomando cuidado para não se cortar. Conseguiu abrir caminho o suficiente para entrar. O calor era infernal. O fogo lambia as paredes. Respirou fundo e conseguiu prosseguir. Olhou rapidamente no quarto e no banheiro, quase que totalmente destruídos e Perez não estava em nenhum dos dois lugares. Desceu as escadas, rezando para encontrar logo o rapaz, pois a fumaça já o estava cegando e sua garganta ardia com muita força. Caminhou abaixado, para evitar intoxicar ainda mais e encontrou Perez desmaiado perto da porta que ligava a loja à oficina. Chegou até ele e conseguiu fazer um apoio para carregá-lo. Arrastou-o até a frente da loja. Mas ainda não tinha como sair. Pelo barulho lá fora, no entanto, sabia que os bombeiros haviam chegado.

- Socorro!! – gritou, o mais alto que pôde – Aqui!! Estamos aqui!!

Ouviu um murmúrio, alguém gritou para se acalmar que iam tirá-los de lá. Em seguida, a porta de ferro começou a ser atingida com força. Miguel protegeu os olhos com uma das mãos, a fumaça mal permitia que ele os mantivesse abertos.

Felizmente, não teve de esperar muito. Alguns minutos foram suficientes para que os bombeiros conseguissem forçar a porta, erguê-la o suficiente para que fossem resgatados. Apenas um bombeiro carregando um machado entrou e ajudou Miguel a carregar Perez.

Nesse momento, Perez já estava recuperando os sentidos. Foi levado até uma ambulância, mas insistia estar bem. Mesmo assim, foi colocado numa máquina para fazer uma inalação, por causa da enorme quantidade de fumaça que respirara. Miguel o acompanhava.

- O que aconteceu? – perguntou, vendo a expressão desolada no rosto de Perez.

- Eu... não sei... (cof-cof)... – respondeu, hesitante, entre tossidas.

A conversa foi interrompida por um médico que ordenou que a ambulância levasse ambos para o hospital. A maca foi recolhida e, de sirene ligada, o veículo se dirigiu para o hospital mais próximo.

*****

Perez estava internado há horas. Não conseguia dormir. Ficava pensando no ritual, no incêndio e que tinha perdido praticamente tudo. Como poderia reconstruir a loja, pagar pelos computadores e tudo o mais que havia se queimado? Estava ferrado, totalmente. Como pagaria pelos cuidados médicos da mãe?

- Como está se sentindo?

Estava tão absorto em pensamentos que sequer notou a aproximação de Miguel, seu salvador.

- Estou bem... como entrou aqui? Não é horário de visitas.

- Eu tenho alguns amigos no hospital, isso me dá algumas regalias. – respondeu, parando ao lado de sua cama e colocando as mãos nos bolsos – E então, vai me contar o que aconteceu?

- ...Você não acreditaria... – divagou Perez, virando o rosto para o outro lado.

- Não acreditaria em quê? Que coisas estranhas têm acontecido, como pessoas malucas tentando te matar e incêndios misteriosos? Ah, qual é, me dá uma chance...

- Eu... não sei o que aconteceu...

- Tá, ok. Mas alguma coisa aconteceu. Notou algo estranho, sei lá, qualquer coisa?

Perez olhou-o de soslaio. Miguel suspirou e sentou-se na cadeira ao lado da cama.

- Vamos lá. Olha, escuta, eu quero ajudar. Eu não sou repórter. Na verdade, sou um agente federal. Por isso te procurei.

Perez olhou com os olhos arregalados.

- Calma. É que eu tenho uma teoria. Uma coisa bem louca e que pode envolver você ou não. Pelo jeito, é provável que sim.

- Que tipo de teoria?

- Uma coisa... hã... como eu vou dizer... você acredita em demônios?

- Bom... mais ou menos...

- É? E o que sabe então? Digo, sobre o assunto?

- Ah, eu andei lendo umas coisas... aliás, acho que o incêndio pode ter a ver com isso... eu fiz um ritual de proteção...

- Ritual de proteção? De onde tirou isso, da internet?

- Não, do diário do meu pai, que encontrei há alguns dias. Achei que era meio que besteira, mas decidi arriscar. Consistia em juntar sal, alho... e meu sangue...

Miguel levou a mão ao rosto.

- Isso não era um encantamento de proteção. O que você fez foi abrir a porta para os demônios.

Perez arregalou ainda mais os olhos, mas não disse nada. Miguel se levantou, pôs a mão em seu ombro.

- Descanse. Depois teremos muito que conversar.

Antes que Perez pudesse retrucar, seu interlocutor deu as costas e saiu apressado. O quarto permaneceu em silêncio absoluto e logo depois Perez adormeceu.

Na manhã seguinte, Perez conseguiu sair do hospital e voltar para o que restou de sua casa, que era muito pouco, aliás. Nem chegou a entrar nos destroços. Ficou olhando desolado da calçada por alguns minutos. Seus olhos estavam marejados, mas não deixou que as lágrimas rolassem.

- Oi, vim saber se está tudo bem.

Antes mesmo de virar-se, Perez sabia de quem era a voz macia, suave, que se dirigia a ele. Era Ana. Enfermeira que muito o ajudara a cuidar da mãe, uma amiga e, talvez, no seu íntimo ele sabia que desejava isso, algo mais.

- Parece que tudo acabou... – disse, contendo o choro.

- Não fica assim. Você vai se recuperar.

Aproximou-se dele, e deu-lhe um abraço. Ficaram abraçados algum tempo, depois, beijaram-se. Um beijo tímido, quase como se fossem adolescentes. Depois se entreolharam, tão logo o beijo terminou. “Hei...”, disse Ana, tentando parecer simpática e animar Perez. O rapaz deixou escapar um sorriso triste.

- Acho que só me resta uma coisa a fazer... – disse, desvencilhando-se dela.

Pegou o celular, ligou para um número que esperava nunca ter de ligar. Alguém atendeu do outro lado.

- Prado? É o Perez, tudo bem? Escuta... hã... ainda tá interessado em sociedade?

terça-feira, 23 de outubro de 2007

Episódio 5: Anjos ou Demônios





Já passava das dez da manhã e Perez trabalhava com mais sono do que o habitual. Seus olhos estavam pesados e pareciam estar cheios de areia. Tudo porque passara a maior parte da noite lendo o diário do pai. Pelo menos as páginas que não se perderam no misterioso incêndio localizado. Mas ainda estava confuso. O diário falava sobre demônios, sobre combatê-los e sobre vários tipos de criaturas, mas não explicava quem eram seus pais e muito menos o que ele tinha a ver com isso. Na verdade, parecia mais um pequeno livreto de terror. Embora, no fundo ele sabia, explicava algumas coisas sobre os acontecimentos dos últimos dias, como a morte estranha do mecânico. Aliás, hoje era dia de prestar depoimento na delegacia. Depois, mais à noite, visitaria sua mãe no Retiro. Pensar nisso o fez sorrir por um instante, pois sabia que Ana também estaria lá. E a última conversa que tiveram estava muito agradável, pelo menos até serem interrompidos pelo ataque da mãe. Terminou de consertar o computador em que estava trabalhando, esfregou os olhos e foi falar com Rogério.
- Rogério, à tarde eu tenho de ir naquela audiência na delegacia.
- Tá bom, chefe! – respondeu o garoto, voltando-se novamente para o computador em que estava com várias janelas do msn piscando, provavelmente aguardando alguma resposta.
Perez voltou para dentro da oficina, passou por ela e subiu para sua casa. Foi direto para o banheiro. Tomaria um banho rápido, depois um lanche e iria para a delegacia, resolver logo esse problema que o estava incomodando.
*****
Prado ainda não entendia bem o que havia acontecido no dia anterior. Talvez porque estivesse embriagado. Seja como for, havia destruído um pedaço do banheiro e agora não tinha condições para consertar. Isso teria de esperar, pelo menos até que arrumasse outro emprego. Devia ter começado hoje mesmo a procurar, mas dormira demais. Mal se lembrara do que ocorrera. Só sabia que Graziela o ajudara a chegar à cama antes de sair para o trabalho.
Sentou-se na sala, ligou a tv e colocou num canal de desenhos. Era bem crescidinho, sabia disso, mas gostava dos desenhos. Principalmente os de heróis. Quem dera tivesse vindo de outro planeta ou tivesse um anel de poder... Mas era hora de pensar em coisas sérias. Como por exemplo, como iria ganhar dinheiro agora que estava sem emprego? Arrumar outro emprego parecia o mais óbvio, mas sabia que não teria a mesma renda, que não poderia bancar todos os custos. Talvez fosse a hora de empregar o dinheiro que receberia e abrir um negócio. Mas o quê? O que poderia ser rentável o suficiente para investir seu dinheiro? Teria de pensar nisso. Mas pensaria depois. Agora tinha de se arrumar para testemunhar na delegacia sobre a morte misteriosa do mecânico dias atrás.
*****
Perez chegara esbaforido à delegacia. Sua camisa começava a ficar com pontos marcados pelo suor. Não havia sol, o dia estava nublado, mas o calor era quase infernal, abafado, e também não havia vento. Subiu por uma pequena rampa de cimento utilizando o corrimão para avançar com mais velocidade. Chegou à recepção e a porta estava aberta. Um oficial da polícia olhou-o com desdém, sem dar-lhe muita importância.
- Oi, boa tarde. Estou aqui para o depoimento, tenho a intimação... – disse Perez, mostrando a pequena carta na mão.
Ainda sem lhe dar atenção, o policial pediu para que ele seguisse à direita e pegasse o corredor até a última sala para falar direto com o delegado. O rapaz assentiu com a cabeça e prosseguiu. Passou por duas salas que tinham as portas fechadas, grandes janelas de vidro e persianas impedindo que se visse dentro delas. Chegou então à última porta, que estava aberta. Dentro da sala, um homem de meia-idade, cabelos um pouco grandes, óculos de lentes enormes e bigode, esperava com feições impacientes.
- Boa tarde, delegado. – disse Perez – Vim para o depoimento...
- Está atrasado. – respondeu o homem, levantando-se da cadeira – Sente-se e aguarde um pouco.
Novamente Perez concordou com a cabeça e sentou-se num banco grande de madeira, que ficava logo ao lado da porta. Estava à mercê do delegado agora, restava esperar. Foi então que, ainda mais esbaforido, viu Prado chegando. Diferente do que podia imaginar, ele não estava engravatado e com cabelo meticulosamente esculpido em gel. Usava uma calça jeans não tão nova, um “sapatênis” que lembrava os de jogadores de boliche e uma camisa azul de botões, que tinha o último aberto.
- Uh, pensei que eu tava atrasado... – disse, puxando conversa com Perez, e dando-lhe a mão para um cumprimento.
- E está. – disse Perez, esticando a mão para responder ao cumprimento de Prado e dando lugar no banco para que o rapaz sentasse.
Assim que Prado sentou-se, o delegado deixou a sala, fechando a porta atrás de si. Os dois se entreolharam.
- É... parece que agora vai demorar mais ainda... – disse Perez.
- É. Não que eu esteja reclamando, já que não tenho mais nada pra fazer mesmo...
- Por quê? Tá de férias?
- É... – riu de soslaio – Férias eternas...
- Tá desempregado?
- Pois é, perdi meu emprego. Disseram que meu salário era muito alto. Há-há... e você, tá trabalhando?
- Eu tenho uma loja de informática. Sabe, conserto micros.
- Hum. Legal. E o dinheiro é bom? Quer dizer, to pensando em abrir alguma coisa, mas ainda não sei o quê...
- Ah, eu trabalho pra caramba e quase não tenho vida social... mas paga minhas contas.
- Bom. E o carro, já consertou?
- Não, ainda não. E o seu?
- O meu? Putz, caiu uma árvore em cima, tá na oficina. Por isso atrasei. Mas não faz mal, se não arrumar emprego logo, nem vou poder pagar as prestações mesmo... – deu uma gargalhada controlada - E que livro é esse que tava lendo quando cheguei? Auto-ajuda?
Perez olhou-o com reprovação.
- Qualé? Auto-ajuda? Dá um tempo... é um diário. Era do meu pai.
- Ah... entendi... seu pai escrevia muito então?
- Não sei bem, fui adotado e só consegui esse diário ontem.
- Ah, que legal, então tá lendo e sabendo sobre seu pai verdadeiro? Legal...
- Mais ou menos. Não é bem um diário do tipo, “oi, eu sou fulano, hoje me aconteceu isso e aquilo”... é mais como um manual, anotações espalhadas, meio desconexas, sei lá. Ainda tô tentando entender. Tem um pedaço que se queimou.
- Interessante. Deve estar sendo uma leitura interessante.
- Um pouco. Acho que explica algumas coisas, mas cria outras novas.
- Sei, é mais ou menos como assistir Lost, né? – riu Prado, referindo-se ao seriado televisivo.
- Não sei, quase não vejo tv.
- Sério? Vai dizer que nunca assistiu Lost?
- Vi alguns comerciais na Globo, mas faz tempo...
- Não, na Globo não, tem de assistir com som original. Pega na locadora. Você tem dvd, não tem?
- Tenho...
- Então pega e assiste cara, vale a pena. A história é tipo assim, vou te contar um pouco, mas fica tranqüilo que não vou estragar nenhuma surpresa, hehe.
- Tá bom... – disse Perez, sem muito ânimo.
Muitos minutos de conversa depois, finalmente o delegado voltou. Abriu a porta e, só depois de sentar-se atrás da mesa, chamou os dois para entrar.
O depoimento demorou um pouco, conferiram as informações com as informações anteriores, pra ver se o que diziam ainda batia e tudo indicava mesmo um acidente. Perez ainda tinha alguns arranhões da luta para provar isso. Prado era quase uma testemunha, já que participara pouco da luta, mas também respondia a processo.
- Bem, senhores, o resultado deve demorar um pouco ainda, mas parece que tá tudo certo. Quando tiver algo, vocês serão novamente intimados.
Agradeceram e saíram.
- É, parece que não vai dar nada mesmo. Ainda bem! – suspirou Prado.
- Claro, não fizemos nada. Foi um acidente. Bom, é isso aí. Boa sorte.
- Sim... claro... até... – respondeu Prado, com feição de cão sem dono.
Perez deteve-se um momento.
- Você tá a pé, né? Quer uma carona? Eu posso te deixar em algum lugar.
- Ah, se for caminho pra você...
- Tá, vamos lá.
Seguiram para o Uno de Perez. Estava arrumadinho, mas Prado não pôde deixar de notar que o carro parecia bastante desconfortável, ainda mais dado seus quase um e noventa de altura. Mas era melhor do que caminhar, ônibus ou metrô.
Prado pediu para que Perez o deixasse em algum lugar perto de um bairro de subúrbio. O rapaz olhou desconfiado, afinal, a pompa do outro não combinava com o tal bairro.
- Não, não, eu não moro lá. Só vou... hã... .visitar uma amiga...
Perez deu de ombros, afinal, não era da sua conta e continuou dirigindo. Logo chegou perto de uma pequena praça e parou o carro. Prado agradeceu, saiu do veículo e ficou esperando que o rapaz fosse embora. Depois que ele se foi, Prado atravessou a praça e chegou à casa de mãe Doraci. Bateu palmas. Uma, duas, três vezes. Até que Doraci finalmente apareceu. A mulher aproximou-se do portão.
- O que você quer? – perguntou, ríspida.
- Eu quero conversar... sobre o que aconteceu quando vim aqui.
- Não tem o que conversar. Você é maldito. Os espíritos são atraídos por você como mariposas pela luz!
- Ah, corta essa... como sou maldito? Nunca fiz nada de mais...
- E o que isso tem a ver? Eu disse que é maldito e não que é seu karma....
- Rá-rá... muito engraçado... mas então me explica, porque sou maldito?
- Eu não sei! – gritou, beirando o nervosismo – Quase todo mundo que vem aqui, não tem nada. Na minha vida inteira, vi um ou outro caso de coisas sobrenaturais verdadeiras. Mas quando você veio aqui... foi como se você fosse um pára-raios!
- Que loucura... Mas peraí, como viu pouca coisa de sobrenatural? Pensei que fosse vidente. – duvidou Prado.
- Sim, mas não quer dizer que eu veja anjos ou demônios. Eu apenas sinto algumas coisas. Quando pego na sua mão, quando olho em seus olhos... eu fico sabendo de algumas coisas. Mas olhar pra você é como olhar para a própria morte... você tem o mal dentro de você!
- Ow, vai com calma! Eu nunca fiz mal a uma mosca e a senhora já tá começando a me assustar.
- É pra ficar assustado mesmo. Tem o amuleto que te dei?
- Me deu? Eu paguei por ele!
- Tá, tá, mas você tá com ele?
- Tá em casa.
- Não deixe de usá-lo. Ele pode te proteger... ou não...
- Ou não? Mas que diabos de amuleto é esse?
- Escute senhor Prado, eu não tenho as respostas que busca. Não sei por que vejo todas essas coisas ruins em você, me parece uma boa pessoa. Mas eu vejo. Não posso mentir. Apenas... bem, apenas tome cuidado. O mal pode estar em qualquer lugar. Inclusive, dentro de você.
Prado arregalou os olhos. Não tinha mais argumentos contra a convicção de Doraci. E estava quase acreditando.
- Tá bom, melhor eu ir embora antes que aconteça alguma desgraça... – riu, tentando parecer tranqüilo.
- Não brinque, senhor Prado. E tome cuidado.
- Tá, pode deixar... vou fazer um seguro de vida... – disse, já caminhando de volta para a praça.
Assim que chegou, sentou-se um pouco. Estava à beira do pânico. Tudo parecia desmoronar de repente em sua vida perfeita. O emprego, o ótimo salário. E agora isso. E nem tinha como voltar pra casa, não fazia idéia onde tomar ônibus ou como chegar ao metrô. Pegou o celular e ligou para a única pessoa que podia ajudá-lo nesse momento.
- Graziela? Tava dormindo? Pôxa, desculpa te acordar... preciso de uma ajuda, será que tem jeito...?
*****
Mal o sol se escondeu no horizonte e Perez já estava a caminho do Retiro Paraíso. Tinha esperanças de que sua mãe estivesse melhor. Pelo menos não tinham ligado para ele durante o dia, o que já era um bom sinal. Parou o carro no estacionamento depois de atravessar o portão e cumprimentar o segurança que já o conhecia bem. Como de costume nesse horário, o estacionamento à direita da entrada estava quase deserto, com apenas alguns poucos carros. Não era hábito de parentes visitarem seus familiares idosos durante a noite, ainda mais em dias de semana. Melhor assim, não gostava de tumultos.
Depois de parar o carro, desligou a chave, fechou o vidro da porta ao lado do motorista e quando foi pegar sua carteira, no porta-luvas, um imenso inseto se chocou contra o pára-brisa. O impacto foi tão grande que chegou a assustá-lo. Pelo menos até perceber que era um inseto morto e espatifado. Mal teve tempo de tomar qualquer atitude, outro inseto chocou-se com o vidro, dessa vez com o da porta da esquerda. Olhou assustado e mais dois barulhos o puseram realmente em alerta. Seu carro parecia estar sendo bombardeado por insetos. Alguns forçavam o vidro, tentando entrar. Notou que havia abelhas, mosquitos e grandes besouros. Abriu a porta de supetão, desceu do carro com pressa e foi atacado pelos bichos. Levou algumas picadas das abelhas, os mosquitos voavam ferozmente contra seu rosto, o zumbido quase chegava a ensurdecê-lo. Deu um berro. Mas não tinha ninguém por perto para ouvir. Tentou defender-se. Deu golpes no ar e tapas contra o próprio corpo. As ferroadas começavam a doer. Encostou uma das mãos no carro, tentando encontrar um senso de direção. Conseguiu respirar um pouco. Com dificuldade, fixou os olhos numa pequena nuvem de insetos logo à sua frente, formando quase algo sólido.
- O que que é isso...? – murmurou retoricamente para si mesmo.
Aproveitou o respiro e tentou se concentrar. Lembrou-se do que dizia o diário do pai. O que era mesmo? Qual trecho? Era tudo tão confuso. Algo sobre demônios. Sobre forças da natureza. Sobre controlar pessoas e animais... não, tudo era tão bagunçado no diário, havia páginas queimadas, outras faltando. Os textos pareciam não ter começo meio e fim, não passavam de anotações desconexas. Voltou-se novamente para a nuvem e os insetos pareciam observá-lo. Aguardavam o próximo momento de atacá-lo. Concentrou-se. Tentou se lembrar de algo do diário que pudesse ajudá-lo, se é que isso era mesmo possível. Então, tão rápido como começou, o ataque acabou. A nuvem se dissipou, os insetos desapareceram. Ainda sem se recuperar, ouviu um som característico. Era seu celular. Olhou para ver quem estava ligando e era do Retiro. Nem se deu ao trabalho de atender, correu para a recepção. Ao chegar, encontrou a recepcionista ao telefone. Assim que o viu, a jovem, de cabelos longos e cacheados e trajando um elegante casaco verde-claro, voltou-se com ar preocupado.
- Sr. Perez, estava ligando para o senhor. É a sua mãe. Ela piorou, foi medicada, mas...
O coração do rapaz estava disparado e parecia que ia parar de bater a qualquer momento, tamanha era a palpitação.
- Mas o quê... – perguntou, com lágrimas quase se anunciando nos cantos dos olhos.
- Ela está em coma. – disse a garota, com uma voz cheia de sentimento – Ela foi transferida para o terceiro andar, para a UTI... – foi interrompida.
- Oi Perez. – era Ana.
- Ana! Oi, como está a minha mãe? – apressou-se ele.
- Não muito bem. Ela piorou, entrou em coma e... se não tiver melhoras, talvez nem possamos mantê-la aqui... talvez ela tenha de ir para um hospital. O médico estava com ela até agora há pouco.
- E...?
- Bom, ela está estável. Respirando por aparelhos...
Perez levou a mão ao rosto. Segurava o choro.
- Posso vê-la? – suplicou.
- Sim, vamos, eu te levo.
Subiram até a UTI, Perez calado, apenas ouvindo os detalhes do que havia ocorrido e o quadro médico da mãe. Ana já era mais do que uma amiga e falava com pesar. Enfim, chegaram ao quarto dela. Perez parou à porta, sem se aproximar. Sua mãe estava pálida, lembrava realmente um cadáver. Mas ele não queria que ela morresse, ela não podia morrer. Não era tão velha, mas era doente. Talvez isso pesasse realmente bem mais do que a idade. Encostou-se ao batente da porta. Ficou olhando para a pobre senhora, indefesa e sobrevivendo apenas graças aos aparelhos médicos ligados ao seu corpo. Ana se aproximou. Segurou em seu ombro com uma das mãos e esfregou o seu braço com a outra. Ele virou o olhar para ela, que deu um sorriso triste, mas companheiro. Em seguida, baixou a cabeça e saiu devagar. Perez voltou novamente sua atenção para a mãe. Tamanha era sua agonia que nem dava atenção às picadas que levara há pouco e que ainda latejavam. Mas não poderia deixar que ela morresse. Mas o que poderia fazer? Nada, a não ser rezar e esperar que os anjos ouvissem suas preces.

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

Episódio 4 - O Despertar



O dia começava a se anunciar timidamente pelas frestas da janela e atravessando a cortina, mas Perez não tinha pregado os olhos a noite toda. Não conseguia tirar da cabeça o que a mãe, aparentemente delirando, dissera. Sobre o tal ritual. E, mais do que isso, sobre ter falado com seu pai. Era a segunda vez que a velha senhora citava seu pai. Não podia ser coincidência, podia? Seu pai havia falecido há anos e sua mãe nunca tivera esse tipo de delírio com ele. Mas será que era desse pai que ela estava falando? De repente, uma idéia surgiu em sua mente. E se sua mãe estivesse falando de seu verdadeiro pai, aquele que o abandonou num orfanato e que ele nunca conheceu? Desde que ficou sabendo ser adotado, nunca teve curiosidade em descobrir quem eram seus pais biológicos, mas, agora, sentia-se tentado a, no mínimo, investigar. Espreguiçou-se na cama, esfregando os olhos para tentar espantar o sono. Eram quase seis horas, pôde ver pelo pequeno visor do celular que estava ao lado da cabeceira da cama. Mesmo assim, levantou-se e vestiu roupas limpas e novas. Uma calça social preta, ainda com as marcas de dobras, uma camisa preta de manga curta e botões e sapatos. Minutos depois, já estava tomando café na cozinha. Alimentou-se rapidamente, não queria perder tempo. Assim que terminou, voltou para o quarto, remexeu na gaveta do criado mudo e encontrou, bem no fundo, o que procurava: seus documentos de adoção. Neles constavam o nome e endereço do orfanato onde vivera algumas semanas apenas, quando ainda bebê. Era a melhor, pra não dizer a única, pista que tinha.

Desceu correndo pelas escadas, passou pela oficina e, na loja, ligou para Rogério. O rapaz atendeu sonolento, devia estar acordando para vir trabalhar.

- Rogério, - disse Perez, sem esperar por resposta – vou ficar fora hoje e preciso que cuide de tudo. Conforme tiver tempo, vai fazendo a manutenção. E não se preocupa que já nesse mês vou te dar um aumento bom, pra compensar tudo isso.

- Tá bom, chefe... – concordou o jovem, ainda baqueado pelo sono.

Desligou o telefone e partiu, no seu Fiat Uno ainda amassado, para o orfanato Raio de Sol. Estava certo de que se houvesse algo para ser descoberto, era lá que estariam as primeiras respostas.

*****

- Você está demitido. – disse o homem de óculos, cabelos ralos e brancos, rosto impassível e roupa social indefectível, sentado atrás da mesa.

Prado não podia acreditar. Demitido? Como? Era um dos melhores, talvez o melhor funcionário do banco. Estava acostumado a demitir funcionários incompetentes, mas ele ser demitido? Isso não era possível.

- Infelizmente Prado, você é um bom funcionário, mas o seu custo para o banco tornou-se muito alto e temos de cortar gastos. Com o seu salário, eu posso contratar dois outros para fazerem a mesma coisa e com a mesma eficiência. – concluiu o homem, um dos poucos na rede de bancos que possuía autoridade para dizer-lhe algo assim.

- Mas... não tem como fazer uma redução salarial...? – queixou-se Prado.

- Você sabe que isso não é permitido... – riu seu superior – Agora, por favor, passe no departamento pessoal para assinar os papéis.

Prado ainda não acreditava. Levantou-se em câmera lenta, a mão no queixo, demonstrando preocupação.

- Prado... – chamou o presidente da empresa, que acabara de demiti-lo – Boa sorte. – disse, acenando a cabeça.

O rapaz concordou, ainda atordoado. Saiu da sala, batendo a porta atrás de si e dirigindo-se para outra sala à direita do corredor, uma sala que ele conhecia bem, pois, por várias vezes, ele mesmo estivera ali para assinar a demissão ou contratação de outros funcionários. Quando entrou e sentou-se à mesa de Simone, ela já o estava aguardando.

- Oi Prado. Você conhece os procedimentos... aqui estão os papéis, é só assinar, por favor. – riu, mas um sorriso triste, na tentativa de ser solidária.

Prado olhou para ela. A moça parecia uma apresentadora de telejornal, tinha os cabelos presos num “rabo” atrás da cabeça, brincos pequenos e maquiagem discreta. Os lábios eram finos e brilhavam pouco, seu nariz também era pontudo, mas arrebitado e elegante. Os olhos verdes pareciam um pouco grande no rosto comprido, mas essa impressão desaparecia quando ela sorria. Prado demorou-se um pouco olhando para ela. Sabia que não mais veria aquele sorriso e, tão pouco, teria chances de dormir com ela. Suspirou. Pegou a caneta e assinou seu nome em todos os documentos, mecanicamente.

- Tchau, Simone. – disse, sem nenhuma emoção e sem conseguir fixar os olhos na garota, assim que se levantou e deu as costas para ir embora.

O próximo passo era passar em sua sala e pegar seus objetos pessoais. Cristiane, sua secretária, ou melhor, ex-secretária, o estava aguardando perto da porta.

- Sinto muito Prado. – disse a garota, parecendo sincera.

- É, eu sei Cris. Mas essas coisas acontecem. Eu tenho um bom currículo e boas referências, logo eu tô num emprego bom de novo. – justificou, tentando parecer confiante e otimista, mas a verdade é que estava baqueado.

Entrou em sua sala, pela última vez, seguido de Cristiane. Começou a arrumar suas coisas lentamente, ajudado pela secretária. Na primeira gaveta de sua mesa, encontrou, dentre outros objetos íntimos, uma foto sua com Graziela. Sentiu vontade de vê-la. Guardou com cuidado o retrato e verificou se nada havia ficado para trás.

- Parece que terminei... – divagou.

Cristiane deu-lhe um abraço amigável e apertado.

- Boa sorte, Prado. Você é uma boa pessoa. Vai se dar bem.

Ele sorriu, olhou para ela.

- Engraçado... – começou – contratei você só por você ser bonita, mas dei sorte, foi a melhor secretária que tive.

- Ah tá... – sorriu ela – então quando estiver no novo emprego, pode me contratar com um aumento.

- Quem sabe? – riu.

Abraçou novamente a garota e se despediu em definitivo. Saiu sem se despedir de mais ninguém. Estava preocupado com suas contas. Comprara o apartamento há apenas 3 meses, as prestações eram altíssimas. O carro também não estava pago. Seu salário garantia o pagamento de tudo isso com folga. Mas e agora? Com certeza arrumaria um outro emprego logo, mas, com certeza também, seria contratado para ganhar metade do que ganhava, isso, se tivesse sorte.

Passou pela porta do banco, olhou ao redor. Pessoas entravam e saiam. Funcionários engravatados atendiam do lado de dentro, alguns usando coletes laranjas com a frase “Posso ajudar?”. Ficou parado por alguns instantes, vendo o movimento, sentindo-se fora do tempo e do espaço. Era como se estivesse movendo-se em câmera lenta, enquanto o mundo continuava acelerado ao seu redor. Enfim, deu um suspiro. Era o amargo gosto do fracasso na boca. Colocou a bolsa preta e azul com seus objetos nas costas e começou a caminhar. Seu apartamento não era muito perto, mas ele tinha muito tempo livre nessa tarde.

*****

Dois pedágios e muitos minutos de viagem depois, finalmente Perez chegou ao endereço que procurava, o orfanato Raio de Sol. Parou o carro do outro lado da rua, para que pudesse observar o prédio enorme e antigo. As grades altas pintadas de cinza davam ao lugar um tom melancólico. As paredes velhas e mal-cuidadas só aumentavam a impressão. “Também, o que eu esperava? O prédio das Chiquititas?”, pensou sozinho, divertindo-se com a imagem abandonada do orfanato. Não havia crianças brincando nos jardins de grama, talvez porque a grama estivesse alta e quase tomada pelo mato. O enorme portão parecia destrancado. Confirmou assim que atravessou a rua e se aproximou. Empurrou o portão e foi recebido por um ruído enorme, talvez por conta dos muitos anos da velha estrutura de ferro. Caminhou pela entrada de cimento, chegando às portas do prédio, depois de subir alguns degraus de escada. A porta também estava apenas encostada, então, empurrou-a e entrou. O lugar estava um pouco escuro, apesar do dia estar apenas começando e do sol brilhar com força do lado de fora.

Encontrou-se num grande corredor, um pouco largo, mas não muito comprido e que parecia terminar num salão enorme, praticamente sem móveis. Ao seu lado esquerdo, havia um balcão, bastante velho e desgastado. Sentada, atrás do balcão, havia uma mulher de meia idade, vestindo uma roupa preta e longa, cobrindo quase toda a cabeça, deixando à mostra somente a face.

- Pois não, senhor? – disse ela, um pouco desconfiada.

- Oi, bom dia... – disse Perez – Eu fui adotado aqui e... hã... quando era criança... e gostaria de saber se...

- O orfanato foi fechado há anos, agora, é só um convento aqui, meu jovem. – interrompeu outra freira, essa bem mais velha que a primeira e que apareceu de repente no fim do corredor.

- Ah... é que eu precisava saber algumas coisas, com quem eu posso falar?

- Bom, eu trabalhei muitos anos no orfanato, até ele ser fechado. Talvez eu possa ajudar. O meu nome é Dalva.

- Olá irmã Dalva, - respondeu Perez, respeitosamente – Pode me chamar de Perez.

Assim que disse o nome, notou uma expressão intrigada na cara da senhora.

- Venha comigo. – disse, fazendo sinal para que a seguisse pelo corredor à esquerda, logo após o balcão.

O rapaz seguiu-a, passaram por um corredor enorme, com portas velhas e de paredes gastas. No final, encontraram uma escada, que parecia destoar do velho prédio, pois a luz do sol que invadia os enormes vitrais à parede, davam vida à escadaria. Subiram por ela e logo chegaram a um quarto. Dalva, a freira, fez sinal para que Perez se sentasse e o rapaz obedeceu, acomodando-se numa cadeira não tão antiga, feita de madeira e com um pequeno estofamento no assento. A senhora fechou a porta atrás de si, sentou-se à cama e pediu os documentos da adoção. Perez atendeu prontamente e ela examinou com presteza e minúcia.

- Eu conheci seu pai. – disse a freira, sem se alterar, depois de ter certeza de que os documentos eram mesmo de quem desconfiava.

- Você... conheceu meu pai? Eu preciso saber quem ele era, o nome dele! – perguntou Perez, afobado.

- Sinto muito, mas eu não sei o seu nome, o que ele fazia ou porque te deixou aqui. Ele apareceu numa noite, o orfanato já estava fechado, mas ele insistiu tanto que nós o atendemos. Ele tinha um bebê no colo, você, e disse que não tinha onde deixá-lo. Disse que corria perigo. Por isso nós o recebemos aqui.

- Mas... foi só isso? – indagou o rapaz, frustrado.

- Não. Ele conversou com a madre superiora em particular. Deixou algo com ela. Então, se foi. Alguns anos atrás, a madre faleceu, ela tinha câncer. Antes de morrer, no entanto, ela me confiou um segredo e me contou o que conversou com seu pai naquela noite. – fez uma pausa, pensativa e depois recomeçou – Pelo menos o que sei pai havia dito. Ele disse que tinha uma missão e que era muito importante que você ficasse em segurança, caso ele falhasse. Que se ele não voltasse, você deveria ser adotado como qualquer criança. Mas ele não deixou seus documentos, não disse seu nome. A única coisa que ele deixou, foi uma agenda, um diário, eu acho. Disse que deveríamos guardá-lo e entregá-lo a você, na hora certa, se essa hora chegasse.

A freira se levantou e Perez parecia hipnotizado. Sua mente parecia ter deixado o corpo. A mulher foi até uma gaveta e retirou o diário. Entregou-o ao rapaz, que ainda estava sem entender. Olhou para o pequeno livro preto em suas mãos, olhou novamente para a freira e levantou-se.

- Obrigado irmã.

- Não há de quê, meu filho. Espero que esse diário te ajude a fazer as pazes com o passado. Eu me lembro do seu pai. Ele parecia desesperado, acredito que tenha tido uma boa razão para deixá-lo aqui e não voltar.

- É o que vamos descobrir, não é? – disse, sorrindo e balançando o diário.

*****

Quando chegou em casa, Prado sentia-se um fracasso. Deixou suas coisas sobre a cama, deitou-se no sofá com uma garrafa de whisky e não teve pudores em tomar doses cada vez maiores. Passou assim o resto da manhã. O telefone tocou várias vezes, insistentemente, mas ele não atendeu. O celular estava jogado em algum canto do quarto, talvez no meio de suas roupas sobre a cama. Assistiu aos desenhos na tv de LCD de 26 polegadas que era um de seus xodós. Os olhos estavam cansados e a cabeça começou a doer. De repente, o interfone começou a tocar. Cambaleou do sofá até a porta de entrada, atendeu, com a voz vacilante.

- Sr. Prado, Graziela na recepção pedindo pra falar com o senhor.

- Tá... – disse ele – manda subir...

Desligou o interfone, destrancou a fechadura e voltou ao sofá. Quando Graziela bateu à porta, não se preocupou em levantar.

- Tá aberta! – gritou do sofá.

A garota entrou e sua expressão de espanto era carregada de pena.

- Prado... eu liguei no banco pra falar com você, sua secretária disse que você foi demitido... fiquei preocupada.

- Ela não é minha secretária... – respondeu ele, a voz confusa pelo efeito da bebida.

- Tá, tá. Mas como você pode tá bêbado a essa hora do dia? Eu nunca te vi bêbado assim. O que você tá bebendo?

- Whisky 12 anos... o banco me deu no natal... – mostrou a garrafa, e Graziela percebeu que estava pela metade, mas, ao lado do sofá, numa mesinha, havia outra, vazia.

- Meu Deus... vem, vou te dar um banho frio pra você melhorar, depois você dorme um pouco, senão, vai ter uma dor de cabeça infernal.

O rapaz olhou para ela por alguns instantes e acabou por concordar. Levantou-se e foi até o banheiro, amparado pela garota.

Graziela colocou-o sentado no vaso enquanto desabotoava o restante da sua camisa. Tirou-a e jogou no cesto de roupas sujas. Tirou também suas meias e calça, endereçando-as ao mesmo destino da camisa. Prado estava só de cuecas, quando o chuveiro começou a espirrar água. A jovem tomou um susto, pois não o havia ligado. A descarga disparou e a torneira do lavatório também começou a vazar. Ela gritou, em pânico, quando a porta fechou-se sozinha, com uma pancada forte e barulho ensurdecedor.

- Prado, o que está acontecendo!? – berrou.

O rapaz levantou-se, a cara furiosa.

- Ah não, hoje não é um bom dia pra essa coisa me aporrinhar...! Pois então, quer me pegar, eu tô aqui! – gritou, a voz só um pouco alterada, como se a fúria tivesse feito o efeito da bebida baixar.

Graziela agarrou-o pelo braço, a voz já lhe faltava na garganta. Mas Prado parecia não ter medo. Aproximou-se do chuveiro e foi atingido por um jato forte de água no peito, coisa que o fez dar outro berro, quase um urro selvagem. Entrou embaixo do chuveiro, a água jorrava com violência. Fechou as mãos, os olhos, cerrou os dentes. Sua companheira acompanhava de uma pequena distância, sem entender, e beirando o desespero. Estava também toda molhada.

Embaixo do chuveiro, Prado parecia ser atacado pela água. O rapaz urrava, como se estivesse sendo queimado pelos jatos. De repente, deu um grito gutural, o espelho do banheiro se partiu, o box que separava a área de banho do restante do cômodo ficou estilhaçado e o silêncio veio depois. Prado estava em pé. Parecia fumegar, mas era apenas o efeito da fumaça da água quente sobre seu corpo. A água parara de jorrar. Graziela tentou dizer algo, mas ele deu dois passos em sua direção e caiu em seus braços, desmaiado.

*****

Perez chegou em casa a tempo de liberar Rogério para ir comprar um lanche. O rapaz nem perguntou ao patrão onde ele havia ido, no momento, estava mais interessado em forrar o estômago. Assim que ele saiu, Perez ficou examinando o diário. Folheou, mas não leu nada. Havia muitas anotações. As últimas páginas, principalmente, pareciam interessantes. Estavam dedicadas ao filho, ou seja, era uma mensagem direta de seu pai. Decidiu fechar a loja para o almoço. Não era hábito, mas Rogério demoraria um pouco para voltar e ele também estava faminto. Trancou a porta de vidro e colocou um recado “fechado para almoço, reabriremos às 13h30”.

Subiu ansioso pelas escadas ao fundo da loja, correu para a cozinha. Colocou a cafeteira elétrica para funcionar, preparou um lanche com pão, presunto e queijo. Deixou o diário sobre a mesa e foi até o quarto. Arrancou sem cuidado a camisa e atirou-a sobre a cama, abriu a janela para que o sol invadisse e iluminasse o cômodo e, de repente, notou um clarão na cozinha. Correu pela porta e, ao chegar, deparou-se com uma pequena fogueira sobre a mesa. O diário estava em chamas. Desesperado, agarrou um pano de prato e começou a bater com força, até conseguir abafar e extinguir definitivamente o fogo. Pegou o pequeno livro e abriu-o para verificar os estragos. E era exatamente como ele esperava. Apenas as páginas finais, as que ele tinha mais curiosidade em ler, estavam queimadas. Era como se o fogo fosse proposital. Mas como? Ficou furioso. Notou que a geladeira falhou. Tentou a luz e ela também não acendeu. De repente, o interfone tocou. Era Rogério, na loja.

- Chefe, já almocei, vou reabrir aqui, tá bom?

- Tá Rogério. Pode abrir. Vou comer alguma coisa e já desço... – disse, sem ânimo.

Arrumou a bagunça na mesa, pegou seu lanche e seu café. Sentou-se no sofá e começou a folhear o diário, antes que outra fogueira misteriosa terminasse com tudo definitivamente.

Música desse episódio - Bring Me To Life (Evanescence) - Baixe:

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quinta-feira, 13 de setembro de 2007

Episódio 3: Ritual


Perez já havia esquecido os acontecimentos bizarros do último fim de semana. O trabalho lhe ocupava a mente e o distraía. Nem se lembrara de comprar o tal jornal de Miguel para ver a matéria. Mas, a princípio, ninguém o acusara. Tinha o tal de Prado como testemunha e as evidências indicavam que ele não era o agressor e sim, o agredido. Restava esperar, teria de depor em alguns dias, mas, até lá, só tinha de concentrar-se no trabalho e na mãe doente. Hoje, por sinal, seria uma noite longa. O Retiro Paraíso havia ligado, sua mãe havia tido uma crise e estava sedada. Repetia que queria vê-lo, que precisava falar-lhe. Estava preocupado e ansioso para vê-la, mas de nada adiantaria ir agora, pois os medicamentos a faziam dormir por horas. Sendo assim, nada mais útil do que terminar seus afazeres e só depois, assim que anoitecesse, ir até lá. Felizmente, do trabalho não podia reclamar, já que as encomendas se sucediam. Pensava até em contratar mais alguém para ajudar Rogério no atendimento, mas, pensando melhor, o rapaz era bem competente e merecia um aumento, isso sim. Bom, faria isso no próximo mês.

*****

Há alguns dias Prado tinha de acordar mais de uma hora antes do habitual. Seu carro estava no conserto e tinha de ir para o trabalho de metrô. Com a quebra do carro percebera também que não possuía amigos na empresa, apenas interesseiros, pois nenhum deles fora capaz de lhe oferecer uma carona. Bom, ele se lembraria disso na hora de promover alguém, ah, com certeza que sim. E, só por via das dúvidas, iria a uma mãe de santo, feiticeira, macumbeira ou qualquer coisa do tipo, pra saber se tinham lhe posto um olho gordo ou era só azar mesmo. Mas não faria isso de metrô e nem pagaria um táxi. Não, recorreria às opções que tinha. Pegou o pequeno celular e procurou um nome na agenda. Selecionou o de Graziela e ligou.

- Oi Grá, tudo bem?

- Oi Prado. Tudo bem. Acordei há pouco e acabei de tomar um banho. – respondeu a garota, visivelmente animada com a ligação.

- Preciso de uma ajuda sua, preciso saber onde tem uma rezadeira, ou qualquer coisa do tipo. Sei que você conhece bem essas coisas, então, se puder me ajudar.

- Ah sim, claro que posso. Tem uma que não fica muito longe do banco. Se quiser, eu posso ir com você até ela.

- Quero sim... será que tem como você me pegar aqui no banco? Eu tô sem carro...

- Ah, claro, pode deixar! Passo aí em meia-hora, pode ser?

- Tá ótimo Grá, obrigado. Um beijo.

Mal esperou pela resposta de Graziela, desligou o celular. Recostou-se à cadeira confortável e confirmou o horário na tela fina de LCD do computador à sua direita na mesa. Faltava pouco mais de 20 minutos para que pudesse ir embora. Isso quer dizer que ainda tinha tempo para um café na cozinha. Saiu da sala satisfeito, conseguira uma carona para casa. Passando pela mesa de Cristiane, convidou a secretária para acompanhá-lo no café. A moça deu de ombros e aceitou, aumentando a satisfação de Prado. Quando a contratou, há pouco menos de um ano, ela foi selecionada entre uma dezena de candidatas por seu carisma, simpatia, pelas belas pernas e enormes seios, mas, até então, ele não havia tido muita sorte em suas investidas e ela nunca aceitara um convite para sair, já que tinha um namorado. Mas nem por isso Prado havia desistido. Talvez fosse só uma questão de tempo, quem sabe? Bom, tudo bem, por hora, se contentaria com o café, afinal, uma bela companhia no café era bem melhor do que o bando de bajuladores que costumava rodeá-lo.

*****

Perez fora acordado por Ana, a enfermeira do Retiro Paraíso. Ele estava com sua mãe no quarto desde às 8 da noite e, no momento, cochilava tranquilamente na cadeira ao lado da cama. A enfermeira o tirara da soneca porque era hora de sua mãe ser medicada. A velha senhora também dormia, embora não tão tranquilamente quanto o filho, já que tinha a respiração pesada e barulhenta.

Enquanto Perez se levantava esfregando os olhos, uma auxiliar de enfermagem preparava a injeção de sua mãe. Perez afastou-se, aproximando-se da porta e de Ana, que o convidou para tomar um café na cozinha, enquanto a auxiliar ministrava o medicamento. Sonolento, Perez aceitou. Saíram pelo corredor e desceram de elevador até o primeiro andar. Viraram à direita, indo na direção contrária à recepção e, atravessando uma porta que tinha um cartaz com os dizeres “somente pessoal autorizado”, chegaram até a cozinha. O cômodo não era muito grande, na verdade, era um pouco apertado. Havia uma pia à esquerda e um galão de água descansava sobre um suporte. Um armário grande ao fundo e uma bancada à esquerda deixavam pouco espaço para a mesa de centro, com apenas seis cadeiras. Na bancada, havia um microondas e um mini-fogão de duas bocas. Mas Perez não prestou muita atenção a esses detalhes e sentou-se numa das cadeiras, ficando de frente para a porta, enquanto Ana dirigiu-se à pia. Enquanto lavava as mãos, perguntou se Perez queria café ou preferia chá. O rapaz preferiu café, pensando que isso o ajudaria a vencer o sono. Ana pegou a garrafa sobre a mesa notou que estava quase vazia.

- Hum... – disse ela, pensativa – Vou até a cozinha pegar café feito agora e já volto. - Saiu em seguida.

Perez sabia que ela se referia à cozinha industrial, onde eram preparadas as refeições dos internos. Ele conhecia as dependências do prédio. Sabia até que o lugar adequado para tomar o tal café seria no refeitório, mas já algumas vezes Ana o convidara para um café na cozinha pessoal dos funcionários e a companhia dela sempre era tão agradável que ele acabara se acostumando.

Não demorou muito e a jovem enfermeira retornou com a garrafa cheia de café. Serviu um copo para cada, sentou-se do outro lado da mesa e começaram a conversar. De princípio, a conversa era a mais formal possível. Falaram sobre o estado da mãe de Perez, sobre os medicamentos e sobre outras coisas sem muita importância. Até que Ana decidiu mudar o rumo da conversa, partindo para uma conversa mais informal e pessoal.

- E então Perez, como anda a vida? Já tá pensando no casamento? – perguntou, tentando esboçar alguma empolgação.

Perez riu, um riso discreto, de desdém.

- Casamento? Claro, só falta a noiva... – gozou.

- Ué, mas e a Cláudia, sua namorada? – perguntou, surpresa.

- Ex-namorada, você quer dizer... a gente terminou, já tá com mais de um mês.

- Ah... – disse Ana, visivelmente constrangida pela falta de tato na pergunta.

- É, ela não tava acostumada com meu jeito... hã... meio “selvagem” de ser. Queria ir em churrasco todo dia com a turma da faculdade dela, e queria que eu fosse também. Não dá. E sem contar que não tenho hora pra vir aqui ver minha mãe e isso a estava incomodando, então, foi melhor terminar.

- Ah... e você tá bem? Quer dizer, desculpa ser intrometida, só...

- Não, não, – interrompeu Perez – tudo bem, não tenho problema pra falar disso. Mas eu tô bem sim.

- Então tá. – concordou Ana, com um sorriso afável, baixando a cabeça um pouco para sentir o cheiro do café antes de tomar mais um gole.

Perez só então parou para reparar na moça. Sabia que ela era jovem, tinha apenas 25 anos. Possuía cabelos longos e pretos, sempre presos atrás da cabeça, formando um rabo. Seus olhos pretos eram grandes e expressivos, pareciam sempre alerta. A boca tinha lábios finos e desenho delicado, assim como o resto da face. Ele a vira poucas vezes sem o jaleco de trabalho, mas fora suficiente para ver que possuía um belo corpo, talvez um pouco magra, ou, talvez isso fosse só a impressão que ficara devido a só vê-la assim de cabelo solto. De qualquer forma, era uma bela garota. E sua companhia estava sendo sempre tão agradável. Decidiu prosseguir com o papo.

- E você, Ana, vai casar? – perguntou, tentando parecer sério.

- Rá! – disse ela – Claro, assim que eu encontrar um vampiro... afinal, só vivo de noite! – riu.

- Tá dizendo que não tem namorado? – insistiu Perez, em tom de sarcasmo.

- Não. O último que tive me ligou bêbado numa madrugada dizendo que tava saindo de uma balada direto pro motel com uma menina que tinha conhecido.

- Não...! O cara fez isso? – espantou-se.

- Pois é... e no dia seguinte me acordou às duas da tarde com cara de cachorro sem dono, pedindo desculpa.

- E você desculpou? – mais sarcasmo.

- Claro... – disse ela, também em tom de sarcasmo – Falei pra ele que ia pensar e ligava de volta. Ele tá esperando faz quatro meses... hahaha! – riu, enfim.

Perez riu também. Depois, ficaram em silêncio e foi Perez quem o quebrou.

- Bom, a gente podia... – foi interrompido.

- Perez, dá licença, mas sua mãe acordou e tá chamando seu nome.

A expressão alegre e despreocupada desapareceu do rosto do rapaz, assim como da enfermeira, e ambos foram até o terceiro andar, ao quarto da mãe dele. A velha senhora parecia lúcida. No entanto, assim que o viu, foi tomada por pânico. Seus olhos estavam arregalados e lágrimas começaram a escorrer. Perez abraçou-a.

- Calma mãe, tá tudo bem... – disse ele, contendo o choro.

- Meu filho... – gaguejou a mulher, mal conseguindo falar – eu vi seu pai... ele falou pra você tomar cuidado...

- Tá mãe, pode deixar... – concordou, tentando acalmá-la.

- Ele me disse... – choramingou a velha – que o ritual foi feito... e agora o mal está solto de novo... que eles virão atrás de você... – seu olhar era puro desespero.

Perez abraçou-a mais forte, sem prestar atenção ao que ela dizia. Aos poucos, ainda nos braços do filho, ela foi se acalmando. Cessou o choro e voltou a deitar-se. As auxiliares mediram sua pressão, não estava alterada. Mas ela estava novamente sonolenta, efeito dos remédios. Perez deu a volta na cama e sentou-se ao seu lado, segurando fortemente sua mão. Ana permaneceu um pouco à porta e, logo, dizendo que estaria em sua sala, se retirou. Não demorou muito para que a senhora voltasse a dormir e, por um momento, o jovem sentiu-se tentando a continuar a conversa com Ana. Mas uma coisa que a mãe dissera não lhe saía da cabeça: “o ritual foi feito. O mal está solto. Eles virão atrás de você”. O que queria dizer? Teria sido apenas delírio da mente já perturbada de sua mãe? É provável que sim, mas, mesmo assim, graças aos acontecimentos estranhos dos últimos dias, isso o estava incomodando.

*****

Graziela, como sempre, era pontual. Prado não gostava muito de andar no seu Ford Ka 2001, mas, embora não fosse possível compará-lo com seu Corola 2007, era muito melhor e mais confortável do que andar de metrô. Por isso mesmo, tentou ser o mais simpático e agradável possível enquanto se dirigiam à tal macumbeira que Graziela dissera conhecer. Felizmente, chegaram logo, a fome começava a incomodar Prado. A casa parecia normal. Tinha um portão baixo e um muro que terminava numa grade que não chegava a dois metros de altura. Do lado de dentro, um jardim bem cuidado, atravessado por um caminho cimentado que levava à casa, que tinha uma pequena área coberta e porta de madeira escura. Graziela tocou a campainha pela segunda vez e uma senhora com uma saia branca e blusa vermelha, com um lenço na cabeça, atendeu. Pediu que entrassem e dirigiu-se aos fundos da casa, indo pelo lado de fora. Graziela e Prado seguiram-na, passando pelo jardim e acompanhando o caminho de flores variadas. Chegaram a um cômodo de fundos e, assim que entraram, a mulher pediu que fechassem a porta.

- Olá, “mãe Doraci”, esse é o Prado, que te falei. – disse Graziela, em baixo tom de voz.

- Você falou de mim pra ela? – perguntou o rapaz, num sussurro.

- Claro, eu liguei pra marcar consulta. Acha que é assim, chegar e ir passando? Ainda bem que ela tinha horário vago. – sussurrou de volta a garota.

- Você, Prado, senta aqui. Graziela, você pode esperar aí no sofá.

Desconfiado, Prado sentou-se numa cadeira, de frente para uma mesa de toalha branca, com alguns badulaques em cima. Um pouco atrás, Graziela ficou aguardando, sentada num sofá velho de dois lugares. A sala tinha pouca luz, a parede era pintada com uma tinta escura e a única janela era coberta por uma espessa cortina. Havia algumas estantes com coisas estranhas, objetos “místicos”, ele imaginou.

- Então Prado, você quer saber se alguém fez feitiço pra você? – perguntou a mulher, sentando-se à sua frente.

- É... – respondeu ele, sem muita convicção. No fundo, sentia-se ridículo se submetendo a esse tipo de situação.

A mulher, que devia ter quase cinqüenta anos, poucos cabelos brancos num rosto cansado, começou a jogar algumas pedras, búzios talvez, ele não sabia ao certo.

- Hum... – disse a mulher enfim, depois de jogar várias vezes as peças – tô vendo que tem uma loira no seu futuro...

Prado olhou de soslaio para Graziela, fez cara de desdém, afinal, a garota era morena.

- Vai te causar problemas... mas vai piorar... – continuou a vidente.

Imaginou quem seria a tal loira. Marisa era morena. Cristiane também. Não se lembrava de nenhuma que pudesse fazer-lhe algo de ruim.

- Aqui eu vejo... – prosseguiu – um ritual! – exclamou – Me deixa ver sua mão! – disse, agitada.

Prado obedeceu e a mulher examinou sua mão demoradamente. Olhou em seguida pra ele.

- Você... tem algo estranho em você... – divagou – Você não é quem diz ser... mas você ainda não sabe quem é! E o mal está ao seu lado!

Prado tirou a mão de súbito das mãos da mulher.

- Tá, tá, acho que já chega, né? – disse, um pouco irritado e sem paciência.

Nesse momento, ouviram um ruído surdo dentro do pequeno quarto, que parecia com o de alguém batendo contra a parede.

Prado não se deteve. Tirou uma nota de cinqüenta da carteira e colocou sobre a mesa. A mulher olhava desconfiada.

- Espere! – disse ela – Leve esse amuleto. Ele vai te dar proteção. – concluiu, pegando numa gaveta da mesa uma pequena pedra pintada com verniz e com inscrições inteligíveis, presa por um cordão preto. Prado apanhou-a e virou-se para sair, mas foi seguro pela mulher.

- O amuleto custa 20... – disse, sem se alterar.

Prado sorriu, com desdém. Ele, que estava acostumado a levar as pessoas na conversa estava sendo enganado pela tal “mãe Doraci”. Pegou os vinte reais e pagou sem reclamar, para que pudesse sair logo dali, estava cansado, com fome e irritado. Não fosse Graziela a dona do carro, ele a deixaria aí.

Puxou a porta e a maçaneta estava travada.

- Aí, dona cigana... – brincou – a porta tá trancada.

- Não está não, é só puxar, meu filho. – respondeu Doraci, sem se importar com a brincadeira.

- Não, tá fechada...

Mal terminou a frase e novo barulho na parede foi ouvido, dessa vez, bem mais alto. Alguns objetos nas estantes vieram ao chão, como se alguém estivesse balançando-as. Doraci começou a olhar para os lados, assustada, e berrou.

- Quem tá aí? Manifeste-se!

Prado olhou para Graziela, com um olhar sarcástico. Mas no fundo ele estava apavorado, pois não era a primeira vez que isso acontecia. Graziela levantou-se, também assustada, mas sem disfarçar. De repente, a mesa tremeu e moveu-se com violência, atingindo Doraci. Ela recuou, disse dois ou três palavrões e tentou entoar uma oração pagã. Então Prado puxou a porta com mais força e conseguiu abri-la e, tão rápido como começou, a manifestação parou.

O rapaz pegou a moça, que ainda estava boquiaberta, pelo braço e puxou-a, sem ao menos se despedir de mãe Doraci.

- Vamos embora! – disse, guiando-a ao carro.

Quando saíram dali, Prado tentou parecer natural e despreocupado e convidou Graziela para jantar em seu apartamento. Mais do que uma forma de agradecimento, não queria ficar sozinho e, pra falar a verdade, também não queria que Graziela ficasse sozinha. Imaginou que isso podia se repetir e queria protegê-la, embora não soubesse bem como. Na melhor das hipóteses, teria a ótima companhia de uma excelente cozinheira para a refeição, depois dela preparar o jantar pra ele, claro.

Música desse episódio: Ritual - Ash. Baixe:
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