- Algum problema, Perez? – perguntou o homem à sua frente.
- Não... – respondeu Perez hesitante – Eu só... ainda não me acostumei com a idéia. – sorriu, meio constrangido, voltando-se para Prado e, em seguida, novamente para a folha.
Enfim, assinou seu nome nele. E nesse momento deixava de ser o único dono da loja de informática que era seu sustento e havia sido destruída no misterioso incêndio. Levantou-se da cadeira, ainda constrangido. Prado estendeu-lhe a mão.
- Então, Perez, nós temos um acordo. Toque aqui... sócio! – brincou.
Saíram do cartório e voltaram para a casa de Perez, que ainda estava quase toda em cinzas. O rapaz estava procurando o que ainda podia ser aproveitado do incêndio. Havia muito pouco. E o pior de tudo, ele estava sem moradia. Tinha de reconstruir o quanto antes o seu negócio, mas o dinheiro guardado que tinha era muito pouco para se manter por muito tempo.
- Hã... Prado... – disse Perez, quebrando o silêncio enquanto dirigia – Desculpa o jeito que te tratei quando veio me falar da sociedade... no fim, queimei a língua...
- Não esquenta, cara. – respondeu Prado – Todo mundo faz besteira às vezes. Mas agora relaxa. O importante é botarmos a loja pra funcionar logo. Ainda mais agora que vamos expandir e transformar em lan house. O dinheiro que eu recebi do banco vai dar pra reconstruir tudo, fica tranqüilo.
- É, ainda bem que você tem dinheiro. Eu tô até sem casa... não quero mais ficar no hotel que passei as últimas noites, preciso alugar uma casa, sei lá...
- Ah, você pode ficar comigo, no meu apartamento, se quiser.
- Ficar... com você...?
- É. Algum problema?
- Não, mas não quero criar problema pra você...
- Criar problema por quê? Você é gay?
- Não, claro que não...
- Ah, então não vai ter problema. – disse Prado, com um sorriso malicioso no rosto.
Chegaram ao que restara da casa de Perez. Olhar para os destroços ainda enchia seus olhos de lágrimas. Prado notou, mas não demonstrou. Ao invés disso, foi adentrando em meio a objetos queimados, vendo se havia algo que valia a pena ser salvo.
Passaram o resto da manhã assim. Já passava do meio-dia quando Prado quis fazer uma pausa para almoçar. Perez recusou o convite, disse que tinha um assunto a resolver. Prado ficou tentando a perguntar o que era, mas se deteve. Então um carro de vidros escuros e placas federais encostou no meio-fio e um rapaz loiro com quase trinta anos desceu do veículo.
- Prado, esse é o Miguel, um... amigo.
- Amigo? Você tem amigos?
- Muito engraçado...
Miguel aproximou-se, cumprimentou os dois rapazes.
- Vamos então, Perez?
- Sim, vamos lá.
Deram as costas a Prado e entraram no carro. Antes de entrar, Perez disse que procuraria por ele quando voltasse, em seu apartamento, para que não se preocupasse porque ele tinha o endereço. Em seguida, o carro partiu. Prado ficou olhando o veículo se afastar e foi interrompido pelo celular. Atendeu, ainda pensativo, enquanto sussurrava “Eu sabia... ele é gay...”.
- Quem é gay? – espantou-se a voz suave do outro lado do aparelho.
- Ah, oi Grazi. Eu só tava lendo uma coisa aqui, não é nada. E aí, tá de folga hoje?
- Sim, você... hã... tá ocupado?
- Pra dizer a verdade, não. E tava pensando mesmo em te ligar. Tô morrendo de fome e queria te levar pra comer em casa...
A garota riu.
- Você não presta mesmo... já pegou seu carro?
- Ainda não. Pode me pegar?
- Tá, me dá vinte minutos que eu tô aí.
Desligou o celular e deteve-se um momento olhando para o aparelho. Aguardava ansioso receber uma ligação do banco falando sobre o emprego a que se candidatara. Estava confiante. Ainda não tinha tido notícias do emprego, então, enquanto nada acontecia, pelo menos se dedicava a seu novo empreendimento. Logo, seria conhecido como um grande empresário. Sorriu, mas sentiu o estômago roncar. “Tomara que a Grazi não demore...”, pensou, afinal, estava faminto.
- Tá, muito bem... me explica como você sabe dessas coisas?
Miguel sorriu. Sem desviar sua atenção da pista, começou a falar.
- Como te disse, sou da polícia federal. Esbarrei com algumas coisas estranhas há alguns anos. Não fiquei convencido de que não era nada e fui verificar. Fiz muita pesquisa, contatei professores de história antiga, cavei o mais fundo que pude. E descobri algumas coisas.
- O que descobriu?
- Bem, basicamente é o seguinte. Há muito tempo, havia essa família. Eles tinham algo de especial, eles eram diferentes. Não consegui rastrear sua origem, mas eles eram caçadores de demônios. Durante a idade média, seus membros desapareceram quase que por completo na caça às bruxas. Muitos foram queimados. Parece que estavam perdendo a guerra com os demônios. Então eles conseguiram se esconder e continuar lutando na clandestinidade, sem que quase ninguém soubesse.
- E o que aconteceu?
- Bom, eu consegui rastrear a genealogia até os dias atuais... o que me levou a você...
- O quê?
- É isso Perez, você é descendente direto dessa família. Por isso o ritual com sangue.
- Mas... – Perez parecia perdido – não faz sentido... por que meu pai deixaria um ritual de libertação de demônios pra mim?
- É o que vamos descobrir. – disse Miguel, parando o carro do outro lado da rua do antigo orfanato Raio de Sol.
Desceram do carro e caminharam em silêncio pela entrada sombria e aparentemente abandonada do enorme prédio. O local parecia deserto. A porta estava aberta, mas não havia ninguém na recepção e o balcão de madeira todo empoeirado dava mostras de que ninguém estivera ali há algum tempo.
- Tem certeza de que é aqui...? – perguntou Miguel, temeroso.
- Claro que tenho, tá achando que tem um burro aqui?
- De forma alguma... – a voz vinha do corredor esquerdo à entrada, e Perez reconheceu-a de imediato, era da freira que lhe entregara o diária, a irmã Dalva – Afinal – continuou – você sempre foi um dos primeiros da sala, não?
- Como sabe? – espantou-se Perez, virando-se para ela e notando que seus cabelos pareciam desgrenhados e sua roupa suja, diferente do asseamento que notara na visita anterior.
- Eu sei tudo sobre você, Perez. – sua voz começou a torna-se mais firme, enchia todo o salão – Sei sobre sua vida e, principalmente, sei que você cumpriu sua missão. Você abriu o portal. E agora, não precisamos mais de você.
Perez e Miguel entreolharam-se. O espanto na cara de ambos era um espelho de medo e dúvida. A freira sorriu.
- E então... – perguntou Perez, afastando-se com um sorriso malicioso – Já pensou na minha proposta?
- Já sim e não adianta que não vou me casar com você! – respondeu de pronto a garoto, virando-se só um pouco para sorrir.
- Essa não... na proposta de emprego, doida! – riu.
- Ah, essa proposta? Bom, a resposta também é não.
- Ué? Por quê? Já disse que cubro o salário que ganha como bargirl.
- O problema não é dinheiro.
- Então qual é? Não quer que saibam que você sai com o chefe?
- Palhaço...
- Tá, sério, qual o problema então?
- Bom, primeiro que vocês estão começando...
- Não exatamente, - interrompeu Prado – o Perez já tá com a loja há um tempo razoável, só vamos expandi-la.
- Tá, certo, mas a parte da lan house é nova. E eu não entendo nada de computador, vou fazer o quê? Servir bebidas semi-nua para seus clientes?
- Hum... até que a idéia não é má... faz serviço “personal”?
- Se você pagar o preço... – respondeu Grazi, depois de sorrir e mandar um olhar sapeca de soslaio.
- Nesse caso, acho que vou cancelar o seu contrato de trabalho na loja... e ficar com as apresentações semi-nuas só pra mim! – dizendo isso, avançou para cima da garota, mas foi interrompido antes de alcançá-la.
- Melhor parar por aí... ou vamos ter lingüiça no almoço... – disse a jovem, com faca em riste e ainda sorrindo.
Miguel parou onde estava. Olhou para abaixo da própria cintura. “Eu odeio lingüiça...”, disse. Mas Grazi recolheu a faca, aproximou-se e o beijou. “Quanto tempo de comida no fogo ainda?”, perguntou, num sussurro.
- Acho que uns vinte minutos... – respondeu Prado, também num sussurro.
- É o suficiente! – terminou, beijando novamente o rapaz, com mais voracidade.
- É hora de encontrar “papai”! – zombou, com uma voz gutural e a face transfigurada.
O rapaz quase entrou em pânico, mas conseguiu se conter. Buscou uma saída, mas a freira demoníaca estava entre o corredor e entre a saída, ele estava encurralado no salão. Mesmo assim, deu as costas e correu. As janelas tinham barras de ferro enormes, não havia como sair por nenhuma delas. No fundo do salão havia outra porta. Experimentou, mas estava trancada. Virou-se para o centro e foi recebido por um golpe que mais parecia um coice de um cavalo. Caiu atordoado, sentiu o gosto de sangue na boca e a visão turva. A pouca claridade do ambiente dificultava tudo. Levantou-se e recebeu novo golpe, mas dessa vez não foi atirado ao chão, pelo contrário, o monstro que o atacava levantou-o, prendendo-o pelo pescoço, segurando com uma só mão. O riso no rosto desfigurado da criatura era assustador, monstruoso, mortal. E Perez mal podia respirar. Deu uma tossida e cuspiu, involuntariamente, um pouco de sangue no rosto de irmã Dalva. A freira gemeu, soltou seu pescoço e recuou, com uma das mãos no rosto. Perez caiu de joelhos, tentou se levantar, mas mal podia ficar em pé. A respiração da freira tornou-se pesada e descompassada. Então ele teve uma idéia. Decidiu partir para o ataque, afinal, era tudo que lhe restara. Não fizesse isso, de qualquer forma, assim que se recuperasse, a criatura monstruosa daria fim à sua vida. Mas não partiria de mãos limpas. Não. Tinha um plano. Uma teoria. Cuspiu o sangue que pôde nas mãos. Esfregou-as para espalhar e com as forças que ainda lhe restava, atirou-se com ferocidade contra a freira que não esperava o ataque e foi pega de surpresa. Conseguiu juntar as mãos no rosto da criatura que gemia e dava berros de agonia. Parecia queimar. Em seguida, desmaiou. Perez deixou-a cair, afastou-se um pouco, mal podia continuar acordado. Sentia as mãos queimarem e parecia ter azia, mas com uma intensidade que jamais sentira. Em seu estômago, parecia acumular-se uma bola de fogo. Em seguida, irmã Dalva abriu os olhos. Estavam cheios de lágrimas. Olhou para Perez, parado atônito a alguns passos.
- Obrigado... – disse, com a voz rouca e fraca – por me salvar disso...
Perez sentiu que ia desmaiar, mas foi seguro por Miguel que parecia recuperado quase que plenamente. Ajudaram irmã Dalva a se levantar.
- Perdoe-me... por tudo... – apressou-se em dizer a senhora, que aparentava mais velha e frágil do que antes.
- O que houve? – perguntou Miguel.
- Eu fui... possuída... – revelou a freira, claramente constrangida – esse... demônio, estava dentro de mim e... controlava minhas ações... ele forjou o diário que entreguei a você, Perez. Era tudo um artifício para que você fizesse o ritual.
Mas Perez sequer deu atenção ao que irmã Dalva dizia. Estava mal. Sequer conseguia ficar consciente, apoiava-se em Miguel para não cair.
- Miguel... – disse enfim – me leva pra casa... preciso descansar...
- Mas... e a irmã Dalva? Ela pode precisar de ajuda e também pode nos dizer muito sobre esses demônios, o ritual e tudo o mais...
- Só. Me. Leve. Pra. Casa! – bradou Perez, firme e pausadamente, mas com tanto vigor que fez as poucas luzes do prédio piscarem.
- Ele está certo. – concordou a freira – Leve-o para casa. Depois conversaremos. Ele precisa descansar.
Miguel ainda quis discutir, mas notou que seria em vão e desistiu. Deixou a freira sob a promessa de que voltaria e fez todo o caminho de volta com Perez semi-desperto e em silêncio ao seu lado. Deixou-o no apartamento de Prado. O rapaz subiu até o terceiro andar, bateu à porta. Do lado de dentro, ouviu uma reclamação: “Pô, eu te dei a chave pra quê?”. Quando Prado abriu a porta, deparou-se com Perez e tomou um susto. Seu sócio tinha as roupas sujas, manchas de sangue nas mãos e no rosto, e a cara péssima.
- E aí, posso entrar? – perguntou, demonstrando esforço.
- Hã... claro... o banheiro fica à esquerda...
Perez passou por ele sem dar satisfações e entocou-se no banheiro. Ligou a ducha e entrou embaixo da água sem nem tirar as roupas. A coisa no seu estômago parecia querer sair. Mal teve tempo de abrir o vaso sanitário e vomitar algo nojento, catarro e sangue. Uma mistura escura, quase negra. Sentou-se encostado à parede, a água caindo sobre seu corpo. Então, fechou os olhos e sentiu que as lágrimas fugiam. Sabia o que tinha feito. Não havia matado o demônio. Não, nada disso. Apenas o tinha tirado da freira e o prendido dentro de si. Podia sentir o demônio dentro dele. Seu próprio demônio interno para se preocupar.