quinta-feira, 4 de outubro de 2007

Episódio 4 - O Despertar



O dia começava a se anunciar timidamente pelas frestas da janela e atravessando a cortina, mas Perez não tinha pregado os olhos a noite toda. Não conseguia tirar da cabeça o que a mãe, aparentemente delirando, dissera. Sobre o tal ritual. E, mais do que isso, sobre ter falado com seu pai. Era a segunda vez que a velha senhora citava seu pai. Não podia ser coincidência, podia? Seu pai havia falecido há anos e sua mãe nunca tivera esse tipo de delírio com ele. Mas será que era desse pai que ela estava falando? De repente, uma idéia surgiu em sua mente. E se sua mãe estivesse falando de seu verdadeiro pai, aquele que o abandonou num orfanato e que ele nunca conheceu? Desde que ficou sabendo ser adotado, nunca teve curiosidade em descobrir quem eram seus pais biológicos, mas, agora, sentia-se tentado a, no mínimo, investigar. Espreguiçou-se na cama, esfregando os olhos para tentar espantar o sono. Eram quase seis horas, pôde ver pelo pequeno visor do celular que estava ao lado da cabeceira da cama. Mesmo assim, levantou-se e vestiu roupas limpas e novas. Uma calça social preta, ainda com as marcas de dobras, uma camisa preta de manga curta e botões e sapatos. Minutos depois, já estava tomando café na cozinha. Alimentou-se rapidamente, não queria perder tempo. Assim que terminou, voltou para o quarto, remexeu na gaveta do criado mudo e encontrou, bem no fundo, o que procurava: seus documentos de adoção. Neles constavam o nome e endereço do orfanato onde vivera algumas semanas apenas, quando ainda bebê. Era a melhor, pra não dizer a única, pista que tinha.

Desceu correndo pelas escadas, passou pela oficina e, na loja, ligou para Rogério. O rapaz atendeu sonolento, devia estar acordando para vir trabalhar.

- Rogério, - disse Perez, sem esperar por resposta – vou ficar fora hoje e preciso que cuide de tudo. Conforme tiver tempo, vai fazendo a manutenção. E não se preocupa que já nesse mês vou te dar um aumento bom, pra compensar tudo isso.

- Tá bom, chefe... – concordou o jovem, ainda baqueado pelo sono.

Desligou o telefone e partiu, no seu Fiat Uno ainda amassado, para o orfanato Raio de Sol. Estava certo de que se houvesse algo para ser descoberto, era lá que estariam as primeiras respostas.

*****

- Você está demitido. – disse o homem de óculos, cabelos ralos e brancos, rosto impassível e roupa social indefectível, sentado atrás da mesa.

Prado não podia acreditar. Demitido? Como? Era um dos melhores, talvez o melhor funcionário do banco. Estava acostumado a demitir funcionários incompetentes, mas ele ser demitido? Isso não era possível.

- Infelizmente Prado, você é um bom funcionário, mas o seu custo para o banco tornou-se muito alto e temos de cortar gastos. Com o seu salário, eu posso contratar dois outros para fazerem a mesma coisa e com a mesma eficiência. – concluiu o homem, um dos poucos na rede de bancos que possuía autoridade para dizer-lhe algo assim.

- Mas... não tem como fazer uma redução salarial...? – queixou-se Prado.

- Você sabe que isso não é permitido... – riu seu superior – Agora, por favor, passe no departamento pessoal para assinar os papéis.

Prado ainda não acreditava. Levantou-se em câmera lenta, a mão no queixo, demonstrando preocupação.

- Prado... – chamou o presidente da empresa, que acabara de demiti-lo – Boa sorte. – disse, acenando a cabeça.

O rapaz concordou, ainda atordoado. Saiu da sala, batendo a porta atrás de si e dirigindo-se para outra sala à direita do corredor, uma sala que ele conhecia bem, pois, por várias vezes, ele mesmo estivera ali para assinar a demissão ou contratação de outros funcionários. Quando entrou e sentou-se à mesa de Simone, ela já o estava aguardando.

- Oi Prado. Você conhece os procedimentos... aqui estão os papéis, é só assinar, por favor. – riu, mas um sorriso triste, na tentativa de ser solidária.

Prado olhou para ela. A moça parecia uma apresentadora de telejornal, tinha os cabelos presos num “rabo” atrás da cabeça, brincos pequenos e maquiagem discreta. Os lábios eram finos e brilhavam pouco, seu nariz também era pontudo, mas arrebitado e elegante. Os olhos verdes pareciam um pouco grande no rosto comprido, mas essa impressão desaparecia quando ela sorria. Prado demorou-se um pouco olhando para ela. Sabia que não mais veria aquele sorriso e, tão pouco, teria chances de dormir com ela. Suspirou. Pegou a caneta e assinou seu nome em todos os documentos, mecanicamente.

- Tchau, Simone. – disse, sem nenhuma emoção e sem conseguir fixar os olhos na garota, assim que se levantou e deu as costas para ir embora.

O próximo passo era passar em sua sala e pegar seus objetos pessoais. Cristiane, sua secretária, ou melhor, ex-secretária, o estava aguardando perto da porta.

- Sinto muito Prado. – disse a garota, parecendo sincera.

- É, eu sei Cris. Mas essas coisas acontecem. Eu tenho um bom currículo e boas referências, logo eu tô num emprego bom de novo. – justificou, tentando parecer confiante e otimista, mas a verdade é que estava baqueado.

Entrou em sua sala, pela última vez, seguido de Cristiane. Começou a arrumar suas coisas lentamente, ajudado pela secretária. Na primeira gaveta de sua mesa, encontrou, dentre outros objetos íntimos, uma foto sua com Graziela. Sentiu vontade de vê-la. Guardou com cuidado o retrato e verificou se nada havia ficado para trás.

- Parece que terminei... – divagou.

Cristiane deu-lhe um abraço amigável e apertado.

- Boa sorte, Prado. Você é uma boa pessoa. Vai se dar bem.

Ele sorriu, olhou para ela.

- Engraçado... – começou – contratei você só por você ser bonita, mas dei sorte, foi a melhor secretária que tive.

- Ah tá... – sorriu ela – então quando estiver no novo emprego, pode me contratar com um aumento.

- Quem sabe? – riu.

Abraçou novamente a garota e se despediu em definitivo. Saiu sem se despedir de mais ninguém. Estava preocupado com suas contas. Comprara o apartamento há apenas 3 meses, as prestações eram altíssimas. O carro também não estava pago. Seu salário garantia o pagamento de tudo isso com folga. Mas e agora? Com certeza arrumaria um outro emprego logo, mas, com certeza também, seria contratado para ganhar metade do que ganhava, isso, se tivesse sorte.

Passou pela porta do banco, olhou ao redor. Pessoas entravam e saiam. Funcionários engravatados atendiam do lado de dentro, alguns usando coletes laranjas com a frase “Posso ajudar?”. Ficou parado por alguns instantes, vendo o movimento, sentindo-se fora do tempo e do espaço. Era como se estivesse movendo-se em câmera lenta, enquanto o mundo continuava acelerado ao seu redor. Enfim, deu um suspiro. Era o amargo gosto do fracasso na boca. Colocou a bolsa preta e azul com seus objetos nas costas e começou a caminhar. Seu apartamento não era muito perto, mas ele tinha muito tempo livre nessa tarde.

*****

Dois pedágios e muitos minutos de viagem depois, finalmente Perez chegou ao endereço que procurava, o orfanato Raio de Sol. Parou o carro do outro lado da rua, para que pudesse observar o prédio enorme e antigo. As grades altas pintadas de cinza davam ao lugar um tom melancólico. As paredes velhas e mal-cuidadas só aumentavam a impressão. “Também, o que eu esperava? O prédio das Chiquititas?”, pensou sozinho, divertindo-se com a imagem abandonada do orfanato. Não havia crianças brincando nos jardins de grama, talvez porque a grama estivesse alta e quase tomada pelo mato. O enorme portão parecia destrancado. Confirmou assim que atravessou a rua e se aproximou. Empurrou o portão e foi recebido por um ruído enorme, talvez por conta dos muitos anos da velha estrutura de ferro. Caminhou pela entrada de cimento, chegando às portas do prédio, depois de subir alguns degraus de escada. A porta também estava apenas encostada, então, empurrou-a e entrou. O lugar estava um pouco escuro, apesar do dia estar apenas começando e do sol brilhar com força do lado de fora.

Encontrou-se num grande corredor, um pouco largo, mas não muito comprido e que parecia terminar num salão enorme, praticamente sem móveis. Ao seu lado esquerdo, havia um balcão, bastante velho e desgastado. Sentada, atrás do balcão, havia uma mulher de meia idade, vestindo uma roupa preta e longa, cobrindo quase toda a cabeça, deixando à mostra somente a face.

- Pois não, senhor? – disse ela, um pouco desconfiada.

- Oi, bom dia... – disse Perez – Eu fui adotado aqui e... hã... quando era criança... e gostaria de saber se...

- O orfanato foi fechado há anos, agora, é só um convento aqui, meu jovem. – interrompeu outra freira, essa bem mais velha que a primeira e que apareceu de repente no fim do corredor.

- Ah... é que eu precisava saber algumas coisas, com quem eu posso falar?

- Bom, eu trabalhei muitos anos no orfanato, até ele ser fechado. Talvez eu possa ajudar. O meu nome é Dalva.

- Olá irmã Dalva, - respondeu Perez, respeitosamente – Pode me chamar de Perez.

Assim que disse o nome, notou uma expressão intrigada na cara da senhora.

- Venha comigo. – disse, fazendo sinal para que a seguisse pelo corredor à esquerda, logo após o balcão.

O rapaz seguiu-a, passaram por um corredor enorme, com portas velhas e de paredes gastas. No final, encontraram uma escada, que parecia destoar do velho prédio, pois a luz do sol que invadia os enormes vitrais à parede, davam vida à escadaria. Subiram por ela e logo chegaram a um quarto. Dalva, a freira, fez sinal para que Perez se sentasse e o rapaz obedeceu, acomodando-se numa cadeira não tão antiga, feita de madeira e com um pequeno estofamento no assento. A senhora fechou a porta atrás de si, sentou-se à cama e pediu os documentos da adoção. Perez atendeu prontamente e ela examinou com presteza e minúcia.

- Eu conheci seu pai. – disse a freira, sem se alterar, depois de ter certeza de que os documentos eram mesmo de quem desconfiava.

- Você... conheceu meu pai? Eu preciso saber quem ele era, o nome dele! – perguntou Perez, afobado.

- Sinto muito, mas eu não sei o seu nome, o que ele fazia ou porque te deixou aqui. Ele apareceu numa noite, o orfanato já estava fechado, mas ele insistiu tanto que nós o atendemos. Ele tinha um bebê no colo, você, e disse que não tinha onde deixá-lo. Disse que corria perigo. Por isso nós o recebemos aqui.

- Mas... foi só isso? – indagou o rapaz, frustrado.

- Não. Ele conversou com a madre superiora em particular. Deixou algo com ela. Então, se foi. Alguns anos atrás, a madre faleceu, ela tinha câncer. Antes de morrer, no entanto, ela me confiou um segredo e me contou o que conversou com seu pai naquela noite. – fez uma pausa, pensativa e depois recomeçou – Pelo menos o que sei pai havia dito. Ele disse que tinha uma missão e que era muito importante que você ficasse em segurança, caso ele falhasse. Que se ele não voltasse, você deveria ser adotado como qualquer criança. Mas ele não deixou seus documentos, não disse seu nome. A única coisa que ele deixou, foi uma agenda, um diário, eu acho. Disse que deveríamos guardá-lo e entregá-lo a você, na hora certa, se essa hora chegasse.

A freira se levantou e Perez parecia hipnotizado. Sua mente parecia ter deixado o corpo. A mulher foi até uma gaveta e retirou o diário. Entregou-o ao rapaz, que ainda estava sem entender. Olhou para o pequeno livro preto em suas mãos, olhou novamente para a freira e levantou-se.

- Obrigado irmã.

- Não há de quê, meu filho. Espero que esse diário te ajude a fazer as pazes com o passado. Eu me lembro do seu pai. Ele parecia desesperado, acredito que tenha tido uma boa razão para deixá-lo aqui e não voltar.

- É o que vamos descobrir, não é? – disse, sorrindo e balançando o diário.

*****

Quando chegou em casa, Prado sentia-se um fracasso. Deixou suas coisas sobre a cama, deitou-se no sofá com uma garrafa de whisky e não teve pudores em tomar doses cada vez maiores. Passou assim o resto da manhã. O telefone tocou várias vezes, insistentemente, mas ele não atendeu. O celular estava jogado em algum canto do quarto, talvez no meio de suas roupas sobre a cama. Assistiu aos desenhos na tv de LCD de 26 polegadas que era um de seus xodós. Os olhos estavam cansados e a cabeça começou a doer. De repente, o interfone começou a tocar. Cambaleou do sofá até a porta de entrada, atendeu, com a voz vacilante.

- Sr. Prado, Graziela na recepção pedindo pra falar com o senhor.

- Tá... – disse ele – manda subir...

Desligou o interfone, destrancou a fechadura e voltou ao sofá. Quando Graziela bateu à porta, não se preocupou em levantar.

- Tá aberta! – gritou do sofá.

A garota entrou e sua expressão de espanto era carregada de pena.

- Prado... eu liguei no banco pra falar com você, sua secretária disse que você foi demitido... fiquei preocupada.

- Ela não é minha secretária... – respondeu ele, a voz confusa pelo efeito da bebida.

- Tá, tá. Mas como você pode tá bêbado a essa hora do dia? Eu nunca te vi bêbado assim. O que você tá bebendo?

- Whisky 12 anos... o banco me deu no natal... – mostrou a garrafa, e Graziela percebeu que estava pela metade, mas, ao lado do sofá, numa mesinha, havia outra, vazia.

- Meu Deus... vem, vou te dar um banho frio pra você melhorar, depois você dorme um pouco, senão, vai ter uma dor de cabeça infernal.

O rapaz olhou para ela por alguns instantes e acabou por concordar. Levantou-se e foi até o banheiro, amparado pela garota.

Graziela colocou-o sentado no vaso enquanto desabotoava o restante da sua camisa. Tirou-a e jogou no cesto de roupas sujas. Tirou também suas meias e calça, endereçando-as ao mesmo destino da camisa. Prado estava só de cuecas, quando o chuveiro começou a espirrar água. A jovem tomou um susto, pois não o havia ligado. A descarga disparou e a torneira do lavatório também começou a vazar. Ela gritou, em pânico, quando a porta fechou-se sozinha, com uma pancada forte e barulho ensurdecedor.

- Prado, o que está acontecendo!? – berrou.

O rapaz levantou-se, a cara furiosa.

- Ah não, hoje não é um bom dia pra essa coisa me aporrinhar...! Pois então, quer me pegar, eu tô aqui! – gritou, a voz só um pouco alterada, como se a fúria tivesse feito o efeito da bebida baixar.

Graziela agarrou-o pelo braço, a voz já lhe faltava na garganta. Mas Prado parecia não ter medo. Aproximou-se do chuveiro e foi atingido por um jato forte de água no peito, coisa que o fez dar outro berro, quase um urro selvagem. Entrou embaixo do chuveiro, a água jorrava com violência. Fechou as mãos, os olhos, cerrou os dentes. Sua companheira acompanhava de uma pequena distância, sem entender, e beirando o desespero. Estava também toda molhada.

Embaixo do chuveiro, Prado parecia ser atacado pela água. O rapaz urrava, como se estivesse sendo queimado pelos jatos. De repente, deu um grito gutural, o espelho do banheiro se partiu, o box que separava a área de banho do restante do cômodo ficou estilhaçado e o silêncio veio depois. Prado estava em pé. Parecia fumegar, mas era apenas o efeito da fumaça da água quente sobre seu corpo. A água parara de jorrar. Graziela tentou dizer algo, mas ele deu dois passos em sua direção e caiu em seus braços, desmaiado.

*****

Perez chegou em casa a tempo de liberar Rogério para ir comprar um lanche. O rapaz nem perguntou ao patrão onde ele havia ido, no momento, estava mais interessado em forrar o estômago. Assim que ele saiu, Perez ficou examinando o diário. Folheou, mas não leu nada. Havia muitas anotações. As últimas páginas, principalmente, pareciam interessantes. Estavam dedicadas ao filho, ou seja, era uma mensagem direta de seu pai. Decidiu fechar a loja para o almoço. Não era hábito, mas Rogério demoraria um pouco para voltar e ele também estava faminto. Trancou a porta de vidro e colocou um recado “fechado para almoço, reabriremos às 13h30”.

Subiu ansioso pelas escadas ao fundo da loja, correu para a cozinha. Colocou a cafeteira elétrica para funcionar, preparou um lanche com pão, presunto e queijo. Deixou o diário sobre a mesa e foi até o quarto. Arrancou sem cuidado a camisa e atirou-a sobre a cama, abriu a janela para que o sol invadisse e iluminasse o cômodo e, de repente, notou um clarão na cozinha. Correu pela porta e, ao chegar, deparou-se com uma pequena fogueira sobre a mesa. O diário estava em chamas. Desesperado, agarrou um pano de prato e começou a bater com força, até conseguir abafar e extinguir definitivamente o fogo. Pegou o pequeno livro e abriu-o para verificar os estragos. E era exatamente como ele esperava. Apenas as páginas finais, as que ele tinha mais curiosidade em ler, estavam queimadas. Era como se o fogo fosse proposital. Mas como? Ficou furioso. Notou que a geladeira falhou. Tentou a luz e ela também não acendeu. De repente, o interfone tocou. Era Rogério, na loja.

- Chefe, já almocei, vou reabrir aqui, tá bom?

- Tá Rogério. Pode abrir. Vou comer alguma coisa e já desço... – disse, sem ânimo.

Arrumou a bagunça na mesa, pegou seu lanche e seu café. Sentou-se no sofá e começou a folhear o diário, antes que outra fogueira misteriosa terminasse com tudo definitivamente.

Música desse episódio - Bring Me To Life (Evanescence) - Baixe:

http://rapidshare.com/files/60294948/Evanescence_-_Bring_Me_To_Life__Live_Acoustic_.mp3.html

Um comentário:

Anônimo disse...

Cada vez melhor!!
Te Amo**
Sil