terça-feira, 23 de outubro de 2007

Episódio 5: Anjos ou Demônios





Já passava das dez da manhã e Perez trabalhava com mais sono do que o habitual. Seus olhos estavam pesados e pareciam estar cheios de areia. Tudo porque passara a maior parte da noite lendo o diário do pai. Pelo menos as páginas que não se perderam no misterioso incêndio localizado. Mas ainda estava confuso. O diário falava sobre demônios, sobre combatê-los e sobre vários tipos de criaturas, mas não explicava quem eram seus pais e muito menos o que ele tinha a ver com isso. Na verdade, parecia mais um pequeno livreto de terror. Embora, no fundo ele sabia, explicava algumas coisas sobre os acontecimentos dos últimos dias, como a morte estranha do mecânico. Aliás, hoje era dia de prestar depoimento na delegacia. Depois, mais à noite, visitaria sua mãe no Retiro. Pensar nisso o fez sorrir por um instante, pois sabia que Ana também estaria lá. E a última conversa que tiveram estava muito agradável, pelo menos até serem interrompidos pelo ataque da mãe. Terminou de consertar o computador em que estava trabalhando, esfregou os olhos e foi falar com Rogério.
- Rogério, à tarde eu tenho de ir naquela audiência na delegacia.
- Tá bom, chefe! – respondeu o garoto, voltando-se novamente para o computador em que estava com várias janelas do msn piscando, provavelmente aguardando alguma resposta.
Perez voltou para dentro da oficina, passou por ela e subiu para sua casa. Foi direto para o banheiro. Tomaria um banho rápido, depois um lanche e iria para a delegacia, resolver logo esse problema que o estava incomodando.
*****
Prado ainda não entendia bem o que havia acontecido no dia anterior. Talvez porque estivesse embriagado. Seja como for, havia destruído um pedaço do banheiro e agora não tinha condições para consertar. Isso teria de esperar, pelo menos até que arrumasse outro emprego. Devia ter começado hoje mesmo a procurar, mas dormira demais. Mal se lembrara do que ocorrera. Só sabia que Graziela o ajudara a chegar à cama antes de sair para o trabalho.
Sentou-se na sala, ligou a tv e colocou num canal de desenhos. Era bem crescidinho, sabia disso, mas gostava dos desenhos. Principalmente os de heróis. Quem dera tivesse vindo de outro planeta ou tivesse um anel de poder... Mas era hora de pensar em coisas sérias. Como por exemplo, como iria ganhar dinheiro agora que estava sem emprego? Arrumar outro emprego parecia o mais óbvio, mas sabia que não teria a mesma renda, que não poderia bancar todos os custos. Talvez fosse a hora de empregar o dinheiro que receberia e abrir um negócio. Mas o quê? O que poderia ser rentável o suficiente para investir seu dinheiro? Teria de pensar nisso. Mas pensaria depois. Agora tinha de se arrumar para testemunhar na delegacia sobre a morte misteriosa do mecânico dias atrás.
*****
Perez chegara esbaforido à delegacia. Sua camisa começava a ficar com pontos marcados pelo suor. Não havia sol, o dia estava nublado, mas o calor era quase infernal, abafado, e também não havia vento. Subiu por uma pequena rampa de cimento utilizando o corrimão para avançar com mais velocidade. Chegou à recepção e a porta estava aberta. Um oficial da polícia olhou-o com desdém, sem dar-lhe muita importância.
- Oi, boa tarde. Estou aqui para o depoimento, tenho a intimação... – disse Perez, mostrando a pequena carta na mão.
Ainda sem lhe dar atenção, o policial pediu para que ele seguisse à direita e pegasse o corredor até a última sala para falar direto com o delegado. O rapaz assentiu com a cabeça e prosseguiu. Passou por duas salas que tinham as portas fechadas, grandes janelas de vidro e persianas impedindo que se visse dentro delas. Chegou então à última porta, que estava aberta. Dentro da sala, um homem de meia-idade, cabelos um pouco grandes, óculos de lentes enormes e bigode, esperava com feições impacientes.
- Boa tarde, delegado. – disse Perez – Vim para o depoimento...
- Está atrasado. – respondeu o homem, levantando-se da cadeira – Sente-se e aguarde um pouco.
Novamente Perez concordou com a cabeça e sentou-se num banco grande de madeira, que ficava logo ao lado da porta. Estava à mercê do delegado agora, restava esperar. Foi então que, ainda mais esbaforido, viu Prado chegando. Diferente do que podia imaginar, ele não estava engravatado e com cabelo meticulosamente esculpido em gel. Usava uma calça jeans não tão nova, um “sapatênis” que lembrava os de jogadores de boliche e uma camisa azul de botões, que tinha o último aberto.
- Uh, pensei que eu tava atrasado... – disse, puxando conversa com Perez, e dando-lhe a mão para um cumprimento.
- E está. – disse Perez, esticando a mão para responder ao cumprimento de Prado e dando lugar no banco para que o rapaz sentasse.
Assim que Prado sentou-se, o delegado deixou a sala, fechando a porta atrás de si. Os dois se entreolharam.
- É... parece que agora vai demorar mais ainda... – disse Perez.
- É. Não que eu esteja reclamando, já que não tenho mais nada pra fazer mesmo...
- Por quê? Tá de férias?
- É... – riu de soslaio – Férias eternas...
- Tá desempregado?
- Pois é, perdi meu emprego. Disseram que meu salário era muito alto. Há-há... e você, tá trabalhando?
- Eu tenho uma loja de informática. Sabe, conserto micros.
- Hum. Legal. E o dinheiro é bom? Quer dizer, to pensando em abrir alguma coisa, mas ainda não sei o quê...
- Ah, eu trabalho pra caramba e quase não tenho vida social... mas paga minhas contas.
- Bom. E o carro, já consertou?
- Não, ainda não. E o seu?
- O meu? Putz, caiu uma árvore em cima, tá na oficina. Por isso atrasei. Mas não faz mal, se não arrumar emprego logo, nem vou poder pagar as prestações mesmo... – deu uma gargalhada controlada - E que livro é esse que tava lendo quando cheguei? Auto-ajuda?
Perez olhou-o com reprovação.
- Qualé? Auto-ajuda? Dá um tempo... é um diário. Era do meu pai.
- Ah... entendi... seu pai escrevia muito então?
- Não sei bem, fui adotado e só consegui esse diário ontem.
- Ah, que legal, então tá lendo e sabendo sobre seu pai verdadeiro? Legal...
- Mais ou menos. Não é bem um diário do tipo, “oi, eu sou fulano, hoje me aconteceu isso e aquilo”... é mais como um manual, anotações espalhadas, meio desconexas, sei lá. Ainda tô tentando entender. Tem um pedaço que se queimou.
- Interessante. Deve estar sendo uma leitura interessante.
- Um pouco. Acho que explica algumas coisas, mas cria outras novas.
- Sei, é mais ou menos como assistir Lost, né? – riu Prado, referindo-se ao seriado televisivo.
- Não sei, quase não vejo tv.
- Sério? Vai dizer que nunca assistiu Lost?
- Vi alguns comerciais na Globo, mas faz tempo...
- Não, na Globo não, tem de assistir com som original. Pega na locadora. Você tem dvd, não tem?
- Tenho...
- Então pega e assiste cara, vale a pena. A história é tipo assim, vou te contar um pouco, mas fica tranqüilo que não vou estragar nenhuma surpresa, hehe.
- Tá bom... – disse Perez, sem muito ânimo.
Muitos minutos de conversa depois, finalmente o delegado voltou. Abriu a porta e, só depois de sentar-se atrás da mesa, chamou os dois para entrar.
O depoimento demorou um pouco, conferiram as informações com as informações anteriores, pra ver se o que diziam ainda batia e tudo indicava mesmo um acidente. Perez ainda tinha alguns arranhões da luta para provar isso. Prado era quase uma testemunha, já que participara pouco da luta, mas também respondia a processo.
- Bem, senhores, o resultado deve demorar um pouco ainda, mas parece que tá tudo certo. Quando tiver algo, vocês serão novamente intimados.
Agradeceram e saíram.
- É, parece que não vai dar nada mesmo. Ainda bem! – suspirou Prado.
- Claro, não fizemos nada. Foi um acidente. Bom, é isso aí. Boa sorte.
- Sim... claro... até... – respondeu Prado, com feição de cão sem dono.
Perez deteve-se um momento.
- Você tá a pé, né? Quer uma carona? Eu posso te deixar em algum lugar.
- Ah, se for caminho pra você...
- Tá, vamos lá.
Seguiram para o Uno de Perez. Estava arrumadinho, mas Prado não pôde deixar de notar que o carro parecia bastante desconfortável, ainda mais dado seus quase um e noventa de altura. Mas era melhor do que caminhar, ônibus ou metrô.
Prado pediu para que Perez o deixasse em algum lugar perto de um bairro de subúrbio. O rapaz olhou desconfiado, afinal, a pompa do outro não combinava com o tal bairro.
- Não, não, eu não moro lá. Só vou... hã... .visitar uma amiga...
Perez deu de ombros, afinal, não era da sua conta e continuou dirigindo. Logo chegou perto de uma pequena praça e parou o carro. Prado agradeceu, saiu do veículo e ficou esperando que o rapaz fosse embora. Depois que ele se foi, Prado atravessou a praça e chegou à casa de mãe Doraci. Bateu palmas. Uma, duas, três vezes. Até que Doraci finalmente apareceu. A mulher aproximou-se do portão.
- O que você quer? – perguntou, ríspida.
- Eu quero conversar... sobre o que aconteceu quando vim aqui.
- Não tem o que conversar. Você é maldito. Os espíritos são atraídos por você como mariposas pela luz!
- Ah, corta essa... como sou maldito? Nunca fiz nada de mais...
- E o que isso tem a ver? Eu disse que é maldito e não que é seu karma....
- Rá-rá... muito engraçado... mas então me explica, porque sou maldito?
- Eu não sei! – gritou, beirando o nervosismo – Quase todo mundo que vem aqui, não tem nada. Na minha vida inteira, vi um ou outro caso de coisas sobrenaturais verdadeiras. Mas quando você veio aqui... foi como se você fosse um pára-raios!
- Que loucura... Mas peraí, como viu pouca coisa de sobrenatural? Pensei que fosse vidente. – duvidou Prado.
- Sim, mas não quer dizer que eu veja anjos ou demônios. Eu apenas sinto algumas coisas. Quando pego na sua mão, quando olho em seus olhos... eu fico sabendo de algumas coisas. Mas olhar pra você é como olhar para a própria morte... você tem o mal dentro de você!
- Ow, vai com calma! Eu nunca fiz mal a uma mosca e a senhora já tá começando a me assustar.
- É pra ficar assustado mesmo. Tem o amuleto que te dei?
- Me deu? Eu paguei por ele!
- Tá, tá, mas você tá com ele?
- Tá em casa.
- Não deixe de usá-lo. Ele pode te proteger... ou não...
- Ou não? Mas que diabos de amuleto é esse?
- Escute senhor Prado, eu não tenho as respostas que busca. Não sei por que vejo todas essas coisas ruins em você, me parece uma boa pessoa. Mas eu vejo. Não posso mentir. Apenas... bem, apenas tome cuidado. O mal pode estar em qualquer lugar. Inclusive, dentro de você.
Prado arregalou os olhos. Não tinha mais argumentos contra a convicção de Doraci. E estava quase acreditando.
- Tá bom, melhor eu ir embora antes que aconteça alguma desgraça... – riu, tentando parecer tranqüilo.
- Não brinque, senhor Prado. E tome cuidado.
- Tá, pode deixar... vou fazer um seguro de vida... – disse, já caminhando de volta para a praça.
Assim que chegou, sentou-se um pouco. Estava à beira do pânico. Tudo parecia desmoronar de repente em sua vida perfeita. O emprego, o ótimo salário. E agora isso. E nem tinha como voltar pra casa, não fazia idéia onde tomar ônibus ou como chegar ao metrô. Pegou o celular e ligou para a única pessoa que podia ajudá-lo nesse momento.
- Graziela? Tava dormindo? Pôxa, desculpa te acordar... preciso de uma ajuda, será que tem jeito...?
*****
Mal o sol se escondeu no horizonte e Perez já estava a caminho do Retiro Paraíso. Tinha esperanças de que sua mãe estivesse melhor. Pelo menos não tinham ligado para ele durante o dia, o que já era um bom sinal. Parou o carro no estacionamento depois de atravessar o portão e cumprimentar o segurança que já o conhecia bem. Como de costume nesse horário, o estacionamento à direita da entrada estava quase deserto, com apenas alguns poucos carros. Não era hábito de parentes visitarem seus familiares idosos durante a noite, ainda mais em dias de semana. Melhor assim, não gostava de tumultos.
Depois de parar o carro, desligou a chave, fechou o vidro da porta ao lado do motorista e quando foi pegar sua carteira, no porta-luvas, um imenso inseto se chocou contra o pára-brisa. O impacto foi tão grande que chegou a assustá-lo. Pelo menos até perceber que era um inseto morto e espatifado. Mal teve tempo de tomar qualquer atitude, outro inseto chocou-se com o vidro, dessa vez com o da porta da esquerda. Olhou assustado e mais dois barulhos o puseram realmente em alerta. Seu carro parecia estar sendo bombardeado por insetos. Alguns forçavam o vidro, tentando entrar. Notou que havia abelhas, mosquitos e grandes besouros. Abriu a porta de supetão, desceu do carro com pressa e foi atacado pelos bichos. Levou algumas picadas das abelhas, os mosquitos voavam ferozmente contra seu rosto, o zumbido quase chegava a ensurdecê-lo. Deu um berro. Mas não tinha ninguém por perto para ouvir. Tentou defender-se. Deu golpes no ar e tapas contra o próprio corpo. As ferroadas começavam a doer. Encostou uma das mãos no carro, tentando encontrar um senso de direção. Conseguiu respirar um pouco. Com dificuldade, fixou os olhos numa pequena nuvem de insetos logo à sua frente, formando quase algo sólido.
- O que que é isso...? – murmurou retoricamente para si mesmo.
Aproveitou o respiro e tentou se concentrar. Lembrou-se do que dizia o diário do pai. O que era mesmo? Qual trecho? Era tudo tão confuso. Algo sobre demônios. Sobre forças da natureza. Sobre controlar pessoas e animais... não, tudo era tão bagunçado no diário, havia páginas queimadas, outras faltando. Os textos pareciam não ter começo meio e fim, não passavam de anotações desconexas. Voltou-se novamente para a nuvem e os insetos pareciam observá-lo. Aguardavam o próximo momento de atacá-lo. Concentrou-se. Tentou se lembrar de algo do diário que pudesse ajudá-lo, se é que isso era mesmo possível. Então, tão rápido como começou, o ataque acabou. A nuvem se dissipou, os insetos desapareceram. Ainda sem se recuperar, ouviu um som característico. Era seu celular. Olhou para ver quem estava ligando e era do Retiro. Nem se deu ao trabalho de atender, correu para a recepção. Ao chegar, encontrou a recepcionista ao telefone. Assim que o viu, a jovem, de cabelos longos e cacheados e trajando um elegante casaco verde-claro, voltou-se com ar preocupado.
- Sr. Perez, estava ligando para o senhor. É a sua mãe. Ela piorou, foi medicada, mas...
O coração do rapaz estava disparado e parecia que ia parar de bater a qualquer momento, tamanha era a palpitação.
- Mas o quê... – perguntou, com lágrimas quase se anunciando nos cantos dos olhos.
- Ela está em coma. – disse a garota, com uma voz cheia de sentimento – Ela foi transferida para o terceiro andar, para a UTI... – foi interrompida.
- Oi Perez. – era Ana.
- Ana! Oi, como está a minha mãe? – apressou-se ele.
- Não muito bem. Ela piorou, entrou em coma e... se não tiver melhoras, talvez nem possamos mantê-la aqui... talvez ela tenha de ir para um hospital. O médico estava com ela até agora há pouco.
- E...?
- Bom, ela está estável. Respirando por aparelhos...
Perez levou a mão ao rosto. Segurava o choro.
- Posso vê-la? – suplicou.
- Sim, vamos, eu te levo.
Subiram até a UTI, Perez calado, apenas ouvindo os detalhes do que havia ocorrido e o quadro médico da mãe. Ana já era mais do que uma amiga e falava com pesar. Enfim, chegaram ao quarto dela. Perez parou à porta, sem se aproximar. Sua mãe estava pálida, lembrava realmente um cadáver. Mas ele não queria que ela morresse, ela não podia morrer. Não era tão velha, mas era doente. Talvez isso pesasse realmente bem mais do que a idade. Encostou-se ao batente da porta. Ficou olhando para a pobre senhora, indefesa e sobrevivendo apenas graças aos aparelhos médicos ligados ao seu corpo. Ana se aproximou. Segurou em seu ombro com uma das mãos e esfregou o seu braço com a outra. Ele virou o olhar para ela, que deu um sorriso triste, mas companheiro. Em seguida, baixou a cabeça e saiu devagar. Perez voltou novamente sua atenção para a mãe. Tamanha era sua agonia que nem dava atenção às picadas que levara há pouco e que ainda latejavam. Mas não poderia deixar que ela morresse. Mas o que poderia fazer? Nada, a não ser rezar e esperar que os anjos ouvissem suas preces.

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

Episódio 4 - O Despertar



O dia começava a se anunciar timidamente pelas frestas da janela e atravessando a cortina, mas Perez não tinha pregado os olhos a noite toda. Não conseguia tirar da cabeça o que a mãe, aparentemente delirando, dissera. Sobre o tal ritual. E, mais do que isso, sobre ter falado com seu pai. Era a segunda vez que a velha senhora citava seu pai. Não podia ser coincidência, podia? Seu pai havia falecido há anos e sua mãe nunca tivera esse tipo de delírio com ele. Mas será que era desse pai que ela estava falando? De repente, uma idéia surgiu em sua mente. E se sua mãe estivesse falando de seu verdadeiro pai, aquele que o abandonou num orfanato e que ele nunca conheceu? Desde que ficou sabendo ser adotado, nunca teve curiosidade em descobrir quem eram seus pais biológicos, mas, agora, sentia-se tentado a, no mínimo, investigar. Espreguiçou-se na cama, esfregando os olhos para tentar espantar o sono. Eram quase seis horas, pôde ver pelo pequeno visor do celular que estava ao lado da cabeceira da cama. Mesmo assim, levantou-se e vestiu roupas limpas e novas. Uma calça social preta, ainda com as marcas de dobras, uma camisa preta de manga curta e botões e sapatos. Minutos depois, já estava tomando café na cozinha. Alimentou-se rapidamente, não queria perder tempo. Assim que terminou, voltou para o quarto, remexeu na gaveta do criado mudo e encontrou, bem no fundo, o que procurava: seus documentos de adoção. Neles constavam o nome e endereço do orfanato onde vivera algumas semanas apenas, quando ainda bebê. Era a melhor, pra não dizer a única, pista que tinha.

Desceu correndo pelas escadas, passou pela oficina e, na loja, ligou para Rogério. O rapaz atendeu sonolento, devia estar acordando para vir trabalhar.

- Rogério, - disse Perez, sem esperar por resposta – vou ficar fora hoje e preciso que cuide de tudo. Conforme tiver tempo, vai fazendo a manutenção. E não se preocupa que já nesse mês vou te dar um aumento bom, pra compensar tudo isso.

- Tá bom, chefe... – concordou o jovem, ainda baqueado pelo sono.

Desligou o telefone e partiu, no seu Fiat Uno ainda amassado, para o orfanato Raio de Sol. Estava certo de que se houvesse algo para ser descoberto, era lá que estariam as primeiras respostas.

*****

- Você está demitido. – disse o homem de óculos, cabelos ralos e brancos, rosto impassível e roupa social indefectível, sentado atrás da mesa.

Prado não podia acreditar. Demitido? Como? Era um dos melhores, talvez o melhor funcionário do banco. Estava acostumado a demitir funcionários incompetentes, mas ele ser demitido? Isso não era possível.

- Infelizmente Prado, você é um bom funcionário, mas o seu custo para o banco tornou-se muito alto e temos de cortar gastos. Com o seu salário, eu posso contratar dois outros para fazerem a mesma coisa e com a mesma eficiência. – concluiu o homem, um dos poucos na rede de bancos que possuía autoridade para dizer-lhe algo assim.

- Mas... não tem como fazer uma redução salarial...? – queixou-se Prado.

- Você sabe que isso não é permitido... – riu seu superior – Agora, por favor, passe no departamento pessoal para assinar os papéis.

Prado ainda não acreditava. Levantou-se em câmera lenta, a mão no queixo, demonstrando preocupação.

- Prado... – chamou o presidente da empresa, que acabara de demiti-lo – Boa sorte. – disse, acenando a cabeça.

O rapaz concordou, ainda atordoado. Saiu da sala, batendo a porta atrás de si e dirigindo-se para outra sala à direita do corredor, uma sala que ele conhecia bem, pois, por várias vezes, ele mesmo estivera ali para assinar a demissão ou contratação de outros funcionários. Quando entrou e sentou-se à mesa de Simone, ela já o estava aguardando.

- Oi Prado. Você conhece os procedimentos... aqui estão os papéis, é só assinar, por favor. – riu, mas um sorriso triste, na tentativa de ser solidária.

Prado olhou para ela. A moça parecia uma apresentadora de telejornal, tinha os cabelos presos num “rabo” atrás da cabeça, brincos pequenos e maquiagem discreta. Os lábios eram finos e brilhavam pouco, seu nariz também era pontudo, mas arrebitado e elegante. Os olhos verdes pareciam um pouco grande no rosto comprido, mas essa impressão desaparecia quando ela sorria. Prado demorou-se um pouco olhando para ela. Sabia que não mais veria aquele sorriso e, tão pouco, teria chances de dormir com ela. Suspirou. Pegou a caneta e assinou seu nome em todos os documentos, mecanicamente.

- Tchau, Simone. – disse, sem nenhuma emoção e sem conseguir fixar os olhos na garota, assim que se levantou e deu as costas para ir embora.

O próximo passo era passar em sua sala e pegar seus objetos pessoais. Cristiane, sua secretária, ou melhor, ex-secretária, o estava aguardando perto da porta.

- Sinto muito Prado. – disse a garota, parecendo sincera.

- É, eu sei Cris. Mas essas coisas acontecem. Eu tenho um bom currículo e boas referências, logo eu tô num emprego bom de novo. – justificou, tentando parecer confiante e otimista, mas a verdade é que estava baqueado.

Entrou em sua sala, pela última vez, seguido de Cristiane. Começou a arrumar suas coisas lentamente, ajudado pela secretária. Na primeira gaveta de sua mesa, encontrou, dentre outros objetos íntimos, uma foto sua com Graziela. Sentiu vontade de vê-la. Guardou com cuidado o retrato e verificou se nada havia ficado para trás.

- Parece que terminei... – divagou.

Cristiane deu-lhe um abraço amigável e apertado.

- Boa sorte, Prado. Você é uma boa pessoa. Vai se dar bem.

Ele sorriu, olhou para ela.

- Engraçado... – começou – contratei você só por você ser bonita, mas dei sorte, foi a melhor secretária que tive.

- Ah tá... – sorriu ela – então quando estiver no novo emprego, pode me contratar com um aumento.

- Quem sabe? – riu.

Abraçou novamente a garota e se despediu em definitivo. Saiu sem se despedir de mais ninguém. Estava preocupado com suas contas. Comprara o apartamento há apenas 3 meses, as prestações eram altíssimas. O carro também não estava pago. Seu salário garantia o pagamento de tudo isso com folga. Mas e agora? Com certeza arrumaria um outro emprego logo, mas, com certeza também, seria contratado para ganhar metade do que ganhava, isso, se tivesse sorte.

Passou pela porta do banco, olhou ao redor. Pessoas entravam e saiam. Funcionários engravatados atendiam do lado de dentro, alguns usando coletes laranjas com a frase “Posso ajudar?”. Ficou parado por alguns instantes, vendo o movimento, sentindo-se fora do tempo e do espaço. Era como se estivesse movendo-se em câmera lenta, enquanto o mundo continuava acelerado ao seu redor. Enfim, deu um suspiro. Era o amargo gosto do fracasso na boca. Colocou a bolsa preta e azul com seus objetos nas costas e começou a caminhar. Seu apartamento não era muito perto, mas ele tinha muito tempo livre nessa tarde.

*****

Dois pedágios e muitos minutos de viagem depois, finalmente Perez chegou ao endereço que procurava, o orfanato Raio de Sol. Parou o carro do outro lado da rua, para que pudesse observar o prédio enorme e antigo. As grades altas pintadas de cinza davam ao lugar um tom melancólico. As paredes velhas e mal-cuidadas só aumentavam a impressão. “Também, o que eu esperava? O prédio das Chiquititas?”, pensou sozinho, divertindo-se com a imagem abandonada do orfanato. Não havia crianças brincando nos jardins de grama, talvez porque a grama estivesse alta e quase tomada pelo mato. O enorme portão parecia destrancado. Confirmou assim que atravessou a rua e se aproximou. Empurrou o portão e foi recebido por um ruído enorme, talvez por conta dos muitos anos da velha estrutura de ferro. Caminhou pela entrada de cimento, chegando às portas do prédio, depois de subir alguns degraus de escada. A porta também estava apenas encostada, então, empurrou-a e entrou. O lugar estava um pouco escuro, apesar do dia estar apenas começando e do sol brilhar com força do lado de fora.

Encontrou-se num grande corredor, um pouco largo, mas não muito comprido e que parecia terminar num salão enorme, praticamente sem móveis. Ao seu lado esquerdo, havia um balcão, bastante velho e desgastado. Sentada, atrás do balcão, havia uma mulher de meia idade, vestindo uma roupa preta e longa, cobrindo quase toda a cabeça, deixando à mostra somente a face.

- Pois não, senhor? – disse ela, um pouco desconfiada.

- Oi, bom dia... – disse Perez – Eu fui adotado aqui e... hã... quando era criança... e gostaria de saber se...

- O orfanato foi fechado há anos, agora, é só um convento aqui, meu jovem. – interrompeu outra freira, essa bem mais velha que a primeira e que apareceu de repente no fim do corredor.

- Ah... é que eu precisava saber algumas coisas, com quem eu posso falar?

- Bom, eu trabalhei muitos anos no orfanato, até ele ser fechado. Talvez eu possa ajudar. O meu nome é Dalva.

- Olá irmã Dalva, - respondeu Perez, respeitosamente – Pode me chamar de Perez.

Assim que disse o nome, notou uma expressão intrigada na cara da senhora.

- Venha comigo. – disse, fazendo sinal para que a seguisse pelo corredor à esquerda, logo após o balcão.

O rapaz seguiu-a, passaram por um corredor enorme, com portas velhas e de paredes gastas. No final, encontraram uma escada, que parecia destoar do velho prédio, pois a luz do sol que invadia os enormes vitrais à parede, davam vida à escadaria. Subiram por ela e logo chegaram a um quarto. Dalva, a freira, fez sinal para que Perez se sentasse e o rapaz obedeceu, acomodando-se numa cadeira não tão antiga, feita de madeira e com um pequeno estofamento no assento. A senhora fechou a porta atrás de si, sentou-se à cama e pediu os documentos da adoção. Perez atendeu prontamente e ela examinou com presteza e minúcia.

- Eu conheci seu pai. – disse a freira, sem se alterar, depois de ter certeza de que os documentos eram mesmo de quem desconfiava.

- Você... conheceu meu pai? Eu preciso saber quem ele era, o nome dele! – perguntou Perez, afobado.

- Sinto muito, mas eu não sei o seu nome, o que ele fazia ou porque te deixou aqui. Ele apareceu numa noite, o orfanato já estava fechado, mas ele insistiu tanto que nós o atendemos. Ele tinha um bebê no colo, você, e disse que não tinha onde deixá-lo. Disse que corria perigo. Por isso nós o recebemos aqui.

- Mas... foi só isso? – indagou o rapaz, frustrado.

- Não. Ele conversou com a madre superiora em particular. Deixou algo com ela. Então, se foi. Alguns anos atrás, a madre faleceu, ela tinha câncer. Antes de morrer, no entanto, ela me confiou um segredo e me contou o que conversou com seu pai naquela noite. – fez uma pausa, pensativa e depois recomeçou – Pelo menos o que sei pai havia dito. Ele disse que tinha uma missão e que era muito importante que você ficasse em segurança, caso ele falhasse. Que se ele não voltasse, você deveria ser adotado como qualquer criança. Mas ele não deixou seus documentos, não disse seu nome. A única coisa que ele deixou, foi uma agenda, um diário, eu acho. Disse que deveríamos guardá-lo e entregá-lo a você, na hora certa, se essa hora chegasse.

A freira se levantou e Perez parecia hipnotizado. Sua mente parecia ter deixado o corpo. A mulher foi até uma gaveta e retirou o diário. Entregou-o ao rapaz, que ainda estava sem entender. Olhou para o pequeno livro preto em suas mãos, olhou novamente para a freira e levantou-se.

- Obrigado irmã.

- Não há de quê, meu filho. Espero que esse diário te ajude a fazer as pazes com o passado. Eu me lembro do seu pai. Ele parecia desesperado, acredito que tenha tido uma boa razão para deixá-lo aqui e não voltar.

- É o que vamos descobrir, não é? – disse, sorrindo e balançando o diário.

*****

Quando chegou em casa, Prado sentia-se um fracasso. Deixou suas coisas sobre a cama, deitou-se no sofá com uma garrafa de whisky e não teve pudores em tomar doses cada vez maiores. Passou assim o resto da manhã. O telefone tocou várias vezes, insistentemente, mas ele não atendeu. O celular estava jogado em algum canto do quarto, talvez no meio de suas roupas sobre a cama. Assistiu aos desenhos na tv de LCD de 26 polegadas que era um de seus xodós. Os olhos estavam cansados e a cabeça começou a doer. De repente, o interfone começou a tocar. Cambaleou do sofá até a porta de entrada, atendeu, com a voz vacilante.

- Sr. Prado, Graziela na recepção pedindo pra falar com o senhor.

- Tá... – disse ele – manda subir...

Desligou o interfone, destrancou a fechadura e voltou ao sofá. Quando Graziela bateu à porta, não se preocupou em levantar.

- Tá aberta! – gritou do sofá.

A garota entrou e sua expressão de espanto era carregada de pena.

- Prado... eu liguei no banco pra falar com você, sua secretária disse que você foi demitido... fiquei preocupada.

- Ela não é minha secretária... – respondeu ele, a voz confusa pelo efeito da bebida.

- Tá, tá. Mas como você pode tá bêbado a essa hora do dia? Eu nunca te vi bêbado assim. O que você tá bebendo?

- Whisky 12 anos... o banco me deu no natal... – mostrou a garrafa, e Graziela percebeu que estava pela metade, mas, ao lado do sofá, numa mesinha, havia outra, vazia.

- Meu Deus... vem, vou te dar um banho frio pra você melhorar, depois você dorme um pouco, senão, vai ter uma dor de cabeça infernal.

O rapaz olhou para ela por alguns instantes e acabou por concordar. Levantou-se e foi até o banheiro, amparado pela garota.

Graziela colocou-o sentado no vaso enquanto desabotoava o restante da sua camisa. Tirou-a e jogou no cesto de roupas sujas. Tirou também suas meias e calça, endereçando-as ao mesmo destino da camisa. Prado estava só de cuecas, quando o chuveiro começou a espirrar água. A jovem tomou um susto, pois não o havia ligado. A descarga disparou e a torneira do lavatório também começou a vazar. Ela gritou, em pânico, quando a porta fechou-se sozinha, com uma pancada forte e barulho ensurdecedor.

- Prado, o que está acontecendo!? – berrou.

O rapaz levantou-se, a cara furiosa.

- Ah não, hoje não é um bom dia pra essa coisa me aporrinhar...! Pois então, quer me pegar, eu tô aqui! – gritou, a voz só um pouco alterada, como se a fúria tivesse feito o efeito da bebida baixar.

Graziela agarrou-o pelo braço, a voz já lhe faltava na garganta. Mas Prado parecia não ter medo. Aproximou-se do chuveiro e foi atingido por um jato forte de água no peito, coisa que o fez dar outro berro, quase um urro selvagem. Entrou embaixo do chuveiro, a água jorrava com violência. Fechou as mãos, os olhos, cerrou os dentes. Sua companheira acompanhava de uma pequena distância, sem entender, e beirando o desespero. Estava também toda molhada.

Embaixo do chuveiro, Prado parecia ser atacado pela água. O rapaz urrava, como se estivesse sendo queimado pelos jatos. De repente, deu um grito gutural, o espelho do banheiro se partiu, o box que separava a área de banho do restante do cômodo ficou estilhaçado e o silêncio veio depois. Prado estava em pé. Parecia fumegar, mas era apenas o efeito da fumaça da água quente sobre seu corpo. A água parara de jorrar. Graziela tentou dizer algo, mas ele deu dois passos em sua direção e caiu em seus braços, desmaiado.

*****

Perez chegou em casa a tempo de liberar Rogério para ir comprar um lanche. O rapaz nem perguntou ao patrão onde ele havia ido, no momento, estava mais interessado em forrar o estômago. Assim que ele saiu, Perez ficou examinando o diário. Folheou, mas não leu nada. Havia muitas anotações. As últimas páginas, principalmente, pareciam interessantes. Estavam dedicadas ao filho, ou seja, era uma mensagem direta de seu pai. Decidiu fechar a loja para o almoço. Não era hábito, mas Rogério demoraria um pouco para voltar e ele também estava faminto. Trancou a porta de vidro e colocou um recado “fechado para almoço, reabriremos às 13h30”.

Subiu ansioso pelas escadas ao fundo da loja, correu para a cozinha. Colocou a cafeteira elétrica para funcionar, preparou um lanche com pão, presunto e queijo. Deixou o diário sobre a mesa e foi até o quarto. Arrancou sem cuidado a camisa e atirou-a sobre a cama, abriu a janela para que o sol invadisse e iluminasse o cômodo e, de repente, notou um clarão na cozinha. Correu pela porta e, ao chegar, deparou-se com uma pequena fogueira sobre a mesa. O diário estava em chamas. Desesperado, agarrou um pano de prato e começou a bater com força, até conseguir abafar e extinguir definitivamente o fogo. Pegou o pequeno livro e abriu-o para verificar os estragos. E era exatamente como ele esperava. Apenas as páginas finais, as que ele tinha mais curiosidade em ler, estavam queimadas. Era como se o fogo fosse proposital. Mas como? Ficou furioso. Notou que a geladeira falhou. Tentou a luz e ela também não acendeu. De repente, o interfone tocou. Era Rogério, na loja.

- Chefe, já almocei, vou reabrir aqui, tá bom?

- Tá Rogério. Pode abrir. Vou comer alguma coisa e já desço... – disse, sem ânimo.

Arrumou a bagunça na mesa, pegou seu lanche e seu café. Sentou-se no sofá e começou a folhear o diário, antes que outra fogueira misteriosa terminasse com tudo definitivamente.

Música desse episódio - Bring Me To Life (Evanescence) - Baixe:

http://rapidshare.com/files/60294948/Evanescence_-_Bring_Me_To_Life__Live_Acoustic_.mp3.html